O Estado de S. Paulo

A POLÍTICA SUCUMBE À TECNOLOGIA

- Rodrigo Petronio É ESCRITOR E FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP, DESENVOLVE PÓS-DOUTORADO NO CENTRO DE TECNOLOGIA­S DA INTELIGÊNC­IA E DESIGN DIGITAL (TIDD/PUC-SP)

As mudanças vertiginos­as da cena política mundial na última década têm dado ensejo a diversas publicaçõe­s: Como as Democracia­s Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; Como a Democracia Chega ao Fim, de David Runciman; Ruptura: a Crise da Democracia Liberal, de Manuel Castells; Fascismo: Um Alerta, de Madeleine Albright; O Progressis­ta de Ontem e o de Amanhã: Desafios da Democracia Liberal no Mundo Pós-Políticas Identitári­as, de Mark Lilla e Berilo Vargas, dentre outros. A despeito do espectro ideológico e dos diagnóstic­os de cada autor, identifica-se algumas constantes: a crise do modelo liberal, as contradiçõ­es da globalizaç­ão, os paradoxos da sociedade da informação e a insuficiên­cia das democracia­s, tais como foram entendidas até agora.

Nesse quadro, o teórico das tecnologia­s Evgeny Morozov tem um lugar de destaque, pois apresenta outro elemento-chave dessa mudança de paradigmas: a morte da política como consequênc­ia das novas tecnologia­s. Essas tecnologia­s baseiam-se sobretudo nos modelos de negócio e na engenharia da informação criada pelo Vale do Silício. Em Big Tech: a Ascensão dos Dados e a Morte da Política, que acaba de ser publicado pela Ubu, com tradução de Claudio Marcondes e orelha de Ronaldo Lemos, o leitor tem um excelente panorama das ideias de Morozov sobre esse fenômeno.

A tese de Morozov é a seguinte: estamos vivendo a cooptação do cidadão pelo indivíduo, do público pelo privado. E essa cooptação produz um esgotament­o do sentido comunitári­o da política. Um “encolhimen­to de nossa imaginação política” de graves consequênc­ias. Esta tese se desdobra em algumas questões. Primeira: as tecnologia­s se baseiam em sancionar o neoliberal­ismo como única alternativ­a econômica existente. Segunda: mesmo os críticos do Vale do Silício recorrem a alternativ­as neoliberai­s. Diante disso, a pergunta que fica é: seria possível fazer uma crítica emancipató­ria, tanto da tecnologia quanto do Vale do Silício e do modelo neoliberal? O livro não pretende responder a esta pergunta, mas apresentar contradiçõ­es desses modelos informacio­nal e econômico globais.

Depois da série de grandes corporaçõe­s farmacêuti­cas (Big Pharma), alimentíci­as (Big Food), petroleira­s (Big Oil), chegamos enfim à dominação dos dados: o Big Data. Trata-se do “capitalism­o dadocêntri­co” ou do “dataísmo”, a religião dos dados, como a define Yuval Harari, outro autor-chave para a compreensã­o desses processos emergentes. As tecnologia­s da informação criaram essa nova era. A mineração de dados e o extrativis­mo digital estão para o século 21 assim como a prospecção de petróleo e o extrativis­mo mineral estavam para o século 20.

Depois do extrativis­mo de recursos naturais, vivemos hoje o extrativis­mo de dados. As empresas de informação são escavadora­s de nossa psique e de nossa privacidad­e. Todos os seres humanos do planeta se transforma­ram em “cofres de dados pessoais” a serviço de sistemas inteligent­es capazes de comparar e vender informaçõe­s pessoais no mercado, no atacado ou no varejo. O aqueciment­o global é um subproduto do capitalism­o fóssil da mesma maneira que as fake news são subproduto­s do capitalism­o digital. A união de ambos produz a morte da política representa­tiva e a inviabilid­ade de projetos globais, capazes de reverter a catástrofe climática.

Essa nova realidade veio à tona à medida que as grandes empresas e corporaçõe­s mundiais perceberam uma mina de ouro imaterial: os algoritmos. Os algoritmos descrevem um vasto leque de padrões comportame­ntais. Se as empresas conseguire­m mapear esses padrões, poderão modelar os consumidor­es (e os eleitores). E os consumidor­es, por sua vez, passarão a modelar os algoritmos. Para Morozov, essa estrutura não tem nada de tautológic­a (circular), mas de tanatológi­ca (mortal).

Trata-se da monetizaçã­o integral da vida. Nossa privacidad­e, nossa subjetivid­ade, nosso desejos mais recônditos viram mercadoria­s, compradas e vendidas à revelia de nossa vontade. A granulidad­e e a rastreabil­idade da informação se tornam armas do controle e da “governamen­talidade” (Foucault). A liberdade individual se reduz a uma prestação de serviços, inconscien­te e involuntár­ia. Cada compartilh­amento de nossos momentos de lazer produz o enriquecim­ento de alguém que não conhecemos. A privacidad­e se transformo­u no maior ativo econômico do século 21. O problema do modelo criado pelo Vale do Silício é o solucionis­mo. Ao invés de percebermo­s as estruturas de causas e efeitos dos problemas mundiais e nacionais, optamos pela solução mais simples oferecida pelas empresas de tecnologia. Por mais distintas que sejam empresas como Airbnb, Uber, Facebook, Google, Apple ou Microsoft todas seguem a regra de ouro do solucionis­mo, dos algoritmos e da desvincula­ção entre meios e fins. Como diria Agamben, ficou caro governar as causas. Diante disso, a tecnologia e os Estados decidiram governar os efeitos. Para Morozov, essa é uma inversão radical do sentido da política, que sempre foi uma preocupaçã­o com as causas e não forma de gestão dos efeitos. A hegemonia do Vale do Silício teria destruído a possibilid­ade de imaginarmo­s outros modelos de gestão e de infraestru­turas comunicaci­onais.

Esse tipo de sociedade guiada pela tecnologia produz bem-estar e governabil­idade. Equem disseque a eficiência e bem-estar são as essências da política? Diversos coletivos, povos e países podem viver em estado de bem-estar sem ter noção de que medida o seu bem-estar existe apenas às custas do sacrifício e da miséria de milhões. Marshall McLuhan concebeu as tecnologia­s digitais como um caminho em direção a uma aldeia global, pós-política e pós-capitalist­a. Uma aldeia de paz. Os resultados do Big Tech para Morozov são assustador­es: extinção da privacidad­e, governabil­idade humana integral, uma sociedade de controle global, reticulada e granulada em todas as esferas da vida e do psiquismo humanos. O Big Tech seria apenas um eufemismo para o Big Brother.

O problema dessa filosofia solucionis­ta é que ela não se propõe apenas a funcionar. Ela de fato funciona. A economia compartilh­ada, a Internet das Coisas, o capitalism­o de plataforma­s, as cidades inteligent­es e outros produtos da Inteligênc­ia Artificial seriam totalmente reféns desse modelo solucionis­ta. Nesse sentido, seriam incapazes de evitar seus efeitos colaterais. A questão nuclear dolivroé: os cidadãos podem reconquist­ara soberania popular sobre a tecnologia? Sim. Mas para tanto seria preciso criar um “consenso algorítmic­o”. O mundo é dominado por uma assimetria epistêmica: a hiper visibilida­de do cidadão c om umépr opor cionalà hiper invisibili­dade dos outros agentes. Apenas o consenso sobre os limites de uso dos algoritmos poderia reverter essa condição.

Morozov se apresenta ao leitor como progressis­ta radical, crítico do modelo liberal e do solucionis­mo tecnológic­o. Essa perspectiv­a tem prós e contras. Esta obraéessen­cialp ara compreende­rmos adinâmica promíscua entre finanças, informação, tecnologia e política neste começo do século 21. Contudo, essa ampliação do aspecto disfuncion­al das tecnologia­s disruptiva­s o impe dede considerar­a tecnologia em sua natureza e em seus aspectos mais amplos. Em certo sentido, toda técnica é uma mediação. E toda mediação simultanea­mente afasta e aproxima os humanos de sua capacidade de autodeterm­inação. Nesse sentido, as tecnologia­s digitais não são tão distintas das demais tecnologia­s produzidas pelo sapiens. Ademais, as democracia­s liberais sã oc ons e quen cia listas, não causais. Se há uma diferença entre consequênc­ia e efeito, entre democracia e eficiência, essa diferença é degrau, não de natureza. Afinal, foram as democracia­s liberais que produziram a ciência experiment­al. E esta ciência experiment­al que produziu as tecnologia­s disruptiva­s criticadas por Morozov. Se estas tecnologia­s estãop restes a aniquilara democracia que as gerou, apenas o futuro pode responder.

O pesquisado­r bielorruss­o Evgeny Morozov avalia o impacto da ascensão do Big Data para a crise da democracia liberal no mundo

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Clique. Novas formas de comunicaçã­o não são essencialm­ente diferentes de outras invenções, diz Morozov, mas são disruptiva­s para o modelo democrátic­o liberal
 ??  ?? Crítico. Evgeny Morozov é cético quanto ao modelo de solucionis­mo tecnológic­o do Vale do Silício
Crítico. Evgeny Morozov é cético quanto ao modelo de solucionis­mo tecnológic­o do Vale do Silício
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BIG TECH AUTOR: EVGENY MOROZOVTRA­DUÇÃO:CLAUDIO MARCONDESE­DITORA: UBU192 PÁGINASR$ 49,90

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