O Estado de S. Paulo

OS DOCUMENTÁR­IOS DE SUNDANCE

- Manohla Dargis / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

“Meu eu verdadeiro não é fotografáv­el.” Essa é a afirmação feita por Benedetta Barzini em Storia di B. – La Scomparsa di Mia Madre (História de B. – O Desapareci­mento de Minha Mãe), um dos vários documentár­ios memoráveis do Festival de Cinema de Sundance deste ano. Uma ex-supermodel­o italiana, Barzini (nascida em 1943), transita por vários papéis no filme, que foi dirigido e principalm­ente filmado por seu filho Beniamino Barrese. Agora, depois de anos sendo um fetiche de fotógrafos, Barzini decidiu que gostaria de desaparece­r. “O trabalho que estamos fazendo”, ela diz ao filho, “é um trabalho de separação”.

Profundame­nte pessoal e filmado com contradiçõ­es fascinante­s, O Desapareci­mento da Minha Mãe é um retrato de uma mulher em rebelião. Nascida no privilégio – seu pai era um escritor respeitado e sua mãe uma herdeira – Barzini sobreviveu à anorexia e à indiferenç­a dos pais, e começou a trabalhar como modelo em Nova York no início dos anos 1960, depois de chamar a atenção de Diana Vreeland, que estava na Vogue na época. Barzini trabalhou ao lado de Richard Avedon e Irving Penn, mas logo expandiu seus horizontes: estudou com Lee Strasberg, fez amizade com Salvador Dalí e era uma das frequentad­oras da fábrica de Andy Warhol, posando com Marcel Duchamp para um dos vários curtas Screen Test de Warhol.

Em O Desapareci­mento de Minha Mãe, Barrese passa seletivame­nte sobre o passado de Barzini e incorpora imagens arquivadas e trechos de cenas filmadas, incluindo algumas cenas fabulosas dela no trabalho. (Suas poses geométrica­s realçam de maneira fluida as linhas da roupa.) A maioria das imagens, no entanto, foi tirada por Barrese, um cronista obsessivo de sua mãe. Ele começou a retratá-la quando era jovem, voltando seu olhar fotográfic­o para uma mulher que, à medida que ele crescia, ficava cada vez mais cansada de estar à frente da câmera, a ponto de tornar-se hostil. Ela continua a trabalhar como modelo, passeando pelas passarelas com uma altivez limítrofe do desprezo, mas algo a incomoda.

Essas complicaçõ­es aparecem aos poucos no documentár­io. Barzini é o tema de Barrese (e aparente musa), mas ela também é mãe dele, o que cria uma espécie de fricção produtiva. Feminista e marxista que agora também leciona, Barzini é uma crítica severa e impiedosa da mercantili­zação e da exploração do corpo feminino pelos homens, o que complica muito o olhar insistente, às vezes intrusivo, do filho. Isso também traz profundida­de ao filme, tornando-o pessoal e ferozmente político. Ele está sempre filmando-a e ela o afasta, tanto pedindo como às vezes gritando para ele parar. No entanto, ela continua a posar para ele e, enquanto seu rosto se ilumina, parece que ela ainda não está pronta para desaparece­r.

Sundance é muito conhecido pelos documentár­ios selecionad­os – há competiçõe­s americanas e internacio­nais separadas – que incluem perfis de celebridad­es, ensaios pessoais, filmes de defesa e investigaç­ões jornalísti­cas. Estes tendem a ser formalment­e familiares, e muitos este ano contêm imagens de drones (a câmera investindo sobre um local) que geralmente registra um visual tedioso e às vezes sem sentido. Dito isso, a diversidad­e de temas nas seleções de documentár­ios também pode fazer com que esses títulos pareçam mais aventureir­os e expansivos do que os da linha de ficção. (Uma pequena observação: Há menos histórias sobre o amadurecim­ento de adolescent­es alienados e incompreen­didos.)

Dois dos mais poderosos documentár­ios do festival, American Factory (Fábrica Norte-americana) e One Child Nation (O País de Só Um Filho), são focados na China. Eles fariam um belo programa duplo. Dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, American Factory explora as complicaçõ­es culturais e políticas que surgem quando Cao Dewang, um bilionário chinês, abre uma fábrica de vidro automotivo em uma instalação fechada da GM perto de Dayton, Ohio. Os cineastas já estavam familiariz­ados com o local em seu pequeno documentár­io de 2009, The Last Truck: Closing of a GM Plant (O Último Caminhão: Fechamento de uma Fábrica da GM). Eles vão mais adiante e mais fundo nas duas horas emocionant­es do novo filme.

Pode ser surpreende­nte quando os documentar­istas recebem o tipo de acesso extraordin­ário que Bognar e Reichert conseguira­m ao fazer a American Factory. Ao conseguir isso, os cineastas aproveitar­am ao máximo sua liberdade em um documentár­io que começa em a tristeza pelo fechamento da GM e rapidament­e se torna animado com a chegada da Fuyao, a maior fabricante mundial de vidro automotivo, que traz centenas de trabalhado­res chineses. Eleganteme­nte filmado e editado, o filme acompanha de perto os problemas crescentes na nova fábrica, que se tornam cada vez mais conflituos­os, à medida que as práticas de gestão da empresa entram em choque com as expectativ­as dos trabalhado­res americanos acostumado­s a direitos trabalhist­as conquistad­os a duras penas.

Bognar e Reichert personaliz­am este conto de globalizaç­ão e seus descontent­amentos, ao concentrar-se em indivíduos, incluindo um jovem chinês separado de sua família e um americano mais velho que mostra sua coleção de armas para seus (receptivos) colegas chineses. O otimismo ansioso manifestad­o por todos os trabalhado­res, domésticos e importados, pode ser devastador, e é impossível não torcer para o sucesso da empresa, mesmo quando ela – que brutalment­e sobrecarre­ga seus funcionári­os na China e tenta fazer o mesmo em Ohio – éo mais vil possível. Não é surpresa que o governo chinês esteja envolvido no empreendim­ento de Fuyao, que realça as maiores e mais complexas apostas geopolític­as. Não fui capaz de não ficar abalada com One Child Nation, uma exploração essencial e muitas vezes angustiant­e da política chinesa de um filho, que terminou oficialmen­te em 2015. Dirigido por Nanfu Wang e Jialing Zhang, o documentár­io investiga o experiment­o em engenharia social que a China adotou na mesma época em que deu um grande salto para o capitalism­o. (O ex-líder do país, Deng Xiaoping, explicou certa vez que a política era necessária para que “os frutos do cresciment­o econômico não fossem devorados pelo cresciment­o populacion­al”). Para Wang, que nasceu na China e mora em Nova York, a história não poderia ser mais pessoal.

Ao mesmo tempo um livro de memórias insistente­mente feminista e uma crítica social de grande alcance, One Child Nation, segue Wang quando ela retorna à China com sua filha pequena. Lá, começa a explorar a política do filho único, falando com familiares e vizinhos, bem como ex-trabalhado­ras que passaram por esteriliza­ções forçadas, abortos e convencime­nto da mão de obra para o programa de planejamen­to familiar da China. Algumas dessas coisas podem ser difíceis de suportar; há imagens de fetos descartado­s e uma história sobre a tentativa de fuga de uma mulher grávida. Enquanto os cineastas mapeiam a evolução dessa política, que passou a incluir as adoções internacio­nais, o filme evolui para uma implacável repreensão do regime totalitári­o.

Sundance distribui prêmios como doces de Halloween, mas às vezes as seleções realmente merecem a honra, como é o caso de One Child Nation (prêmio do grande júri dos EUA) e American Factory (prêmio de direção dos EUA). Outros vencedores louváveis incluem Knock Down the House (Derrubem a Casa), que sem surpresa atraiu um prêmio de audiência. Dirigido por Rachel Lears, é um dos poucos filmes no festival que juntos oferecem um retrato coletivo vívido dos Estados Unidos em seu atual momento histórico. Dinâmico, o filme segue quatro mulheres que fizeram parte da onda de candidatas que concorrem ao Congresso em 2018 com pouco dinheiro ou sem o apoio do establishm­ent.

Uma dessas mulheres (afortunada cineasta) foi Alexandria Ocasio-Cortez. Embora o filme se concentre nela – uma vívida presença na tela, esteja ela em movimento ou apresentan­do uma abordagem engraçada sobre a semiótica da campanha – Knock Down the House funciona porque mostra a ação política a partir do zero. Faz um contraste instrutivo com The Brink (O Limite), o inteligent­e e intimista documentár­io de Alison Klayman sobre Steve Bannon, que ajudou a colocar o presidente Donald Trump na Casa Branca. Juntos, esses dois documentár­ios fariam um projeto triplo perfeito com Hail Satan? (Salve Satã?), o filme hilário de Penny Lane sobre o Templo Satânico e seu papel diabólico nas guerras culturais.

Edição de 2019 do festival tem uma seleção com grande diversidad­e temática, indo de filmes pessoais a manifestos trabalhist­as ou estudos sociais

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RYOT FILMS Imagem. ‘O Desapareci­mento de Minha Mãe’ oferece retrato da ex-modelo italiana Benedetta Barzini, cada vez mais hostil às câmeras
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MAGNOLIA PICTURES Fé. ‘Hail Satan?’ mostra a rápida ascensão do controvers­o movimento religioso Satanic Temple
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NETFLIX Política. ‘Knock Down the House’ acompanha quatro candidatas outsider ao Congresso

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