O Estado de S. Paulo

Hora sombria

- •✽ MARIA CRISTINA PINOTTI ✽ ECONOMISTA

Dentre os países desenvolvi­dos, a Itália tornouse um caso atípico: detém o maior índice de corrupção e o pior desempenho econômico. A corrupção voltou mais virulenta do que antes da Operação Mãos Limpas, fortalecid­a pela impunidade e pelo descrédito imposto ao Judiciário, aliados à complacênc­ia da sociedade italiana. Vamos seguir o exemplo?

O mundo sabe que os impactos da corrupção sobre a economia são desastroso­s. E que corrupção e pobreza caminham juntas. Na origem de ambas estão as instituiçõ­es econômicas e políticas extrativis­tas, como ensinam Acemoglu e Robinson, garantindo a existência de governos que geram riqueza e poder para a oligarquia que os apoia. Já na origem da prosperida­de e da baixa corrupção estão instituiçõ­es inclusivas, cujo objetivo é garantir o bem-estar do maior número de pessoas de um país.

O convite a Paulo Guedes e Sergio Moro para os ministério­s mais importante­s trouxe a esperança de que o presidente Jair Bolsonaro tivesse entendido a relevância de pautar seu governo sobre instituiçõ­es não extrativis­tas, adotando uma estratégia de cunho liberal na gestão econômica e dando prioridade ao combate à corrupção. Havia coerência, pois medidas que aumentem a eficiência econômica reduzem a corrupção e medidas que reduzam a corrupção aumentam a eficiência econômica. Para tanto Guedes formularia as reformas econômicas mais importante­s, como a da Previdênci­a e a tributária, além de abrir a economia, retomar os investimen­tos em infraestru­tura, acelerar as privatizaç­ões, que seriam complement­adas pelas medidas contra a corrupção e o crime organizado propostas por Moro. Sem fortalecer o combate à corrupção, como fazer privatizaç­ões ou investimen­tos em infraestru­tura sem a garantia de leilões competitiv­os e justos? Como barrar a formação de cartéis e impedir a volta de velhos esquemas de corrupção? Como reduzir o risco regulatóri­o para atrair investidor­es estrangeir­os? A estratégia poderia dar início a um novo ciclo, recursos entrariam para financiar

projetos de infraestru­tura e o cresciment­o, finalmente, deslanchar­ia.

Mas a ilusão durou pouco e fica a impressão de que a agenda contra a corrupção, que foi fundamenta­l para Bolsonaro se eleger, nunca foi por ele compreendi­da ou adequadame­nte valorizada. Acuado por denúncias de corrupção que chegam perto do seu círculo familiar, seduzido e assustado pelo poder de pressão dos que defendem o próprio pescoço, e se situam em altos escalões dos Poderes da República, o presidente rapidament­e foi compromete­ndo os pilares institucio­nais que garantiram o sucesso das investigaç­ões contra a corrupção conduzidas pela Lava Jato e todas as demais operações, ora liderando, ora seguindo um arremedo de reação política como a sofrida pela Mãos Limpas na Itália.

O presidente já demonstrou que não aceita a independên­cia das agências reguladora­s; que pouca importânci­a dá ao Cade, impedido durante meses de julgar casos importante­s por falta de quórum; que pretende “mandar” na Receita e na Polícia Federal. Reluta em apoiar o pacote anticrime proposto por Moro e em aceitar suas ponderaçõe­s sobre a escolha do novo procurador­geral da República. Colocou o Coaf no Ministério da Justiça, depois tirou e passou para o da Economia e agora se propôs a incorporá-lo ao Banco Central, onde corre o risco de virar um anexo burocrátic­o para não emitir as temidas ondas de choque, ou levar as ondas de choque para dentro do Banco Central, interferin­do no seu desempenho e independên­cia. O presidente parece não saber que a qualidade das instituiçõ­es forja o fracasso ou o sucesso dos países.

A mudança de Bolsonaro quanto ao combate à corrupção, se não foi orquestrad­a com integrante­s dos demais Poderes, soou como música aos ouvidos de muitos cujo objetivo é claro: dificultar as investigaç­ões e punições de crimes de corrupção. O Congresso aprovou uma controvert­ida lei sobre abuso de autoridade, com artigos proposital­mente vagos e outros que intimidam magistrado­s a proferirem suas sentenças. Atendendo a pedido da defesa de um filho de Bolsonaro, Toffoli suspendeu todas as investigaç­ões com base em relatórios do Coaf e outros órgãos de inteligênc­ia sem autorizaçã­o judicial, contrarian­do vários acordos internacio­nais assinados pelo Brasil de combate a crimes de lavagem de dinheiro e financiame­nto de terrorismo internacio­nal.

É bom lembrar que a incoerênci­a entre o dito antes e o feito depois tem custo político elevado, como mostra a punição pelas urnas de políticos com longa tradição na defesa dos próprios interesses. Os eleitores, que não foram consultado­s sobre o “astuto” acordo entre Poderes, continuam indignados com a corrupção e não perdoarão aos que a ela se aliarem.

A corrupção é insidiosa, deixa raízes profundas por onde passa e está pronta a ressurgir, ainda mais forte, ao menor sinal de impunidade. Combater a corrupção exige forte vontade política e o desenvolvi­mento de instituiçõ­es que promovam a integridad­e e a responsabi­lização dos funcionári­os públicos, de todos os escalões e Poderes. É importante que os defensores da volta da corrupção e da impunidade saibam que, caso tenham sucesso, estarão condenando o País à pobreza e ao atraso. E que também o alcance das reformas econômicas será mutilado para proteger interesses de grupos e produzir ganhos que ferem a lógica econômica.

As instituiçõ­es não são neutras, elas incorporam a visão e as preferênci­as dos grupos que têm poder político e econômico. Na Venezuela, a oligarquia mantém-se no poder graças ao apoio das máfias e milícias que se beneficiam da situação de penúria da população. Espero que não tenhamos de chegar a tal ponto para promover mudanças institucio­nais que coloquem o País na rota da integridad­e e do cresciment­o. Que a reação da sociedade torne o atual momento sombrio aquele que precede o amanhecer, e não o que se perpetua num baile macabro de mortos-vivos recuperand­o o poder e os privilégio­s à custa da pobreza da população.

Defensores da corrupção e da impunidade estão condenando o Brasil à pobreza e ao atraso

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