O Estado de S. Paulo

‘Company’ expõe os problemas dos relacionam­entos

Musical clássico de Stephen Sondheim ganha divertida versão carioca, sob a direção de João Fonseca

- Ubiratan Brasil

Reza a lenda que Stephen Sondheim, um dos maiores compositor­es de musicais de todos os tempos, passou uma noite conversand­o com duas amigas para entender a visão feminina de relacionam­entos amorosos. A experiênci­a teria sido vital para a escrita de Company, musical de 1970 que tem libreto de George Furth e que foi pioneiro ao tratar de problemas adultos por meio de suas canções. “É um trabalho ainda estimulant­e por mostrar as diversas fases das relações”, comenta Reiner Tenente que, desde 2016, detém os direitos para uma montagem brasileira, o que aconteceu na sexta, 30, no Sesc Ginástico, no Rio.

Company acompanha a movimentaç­ão de cinco casais que são amigos de Bobby, rapaz solteiro que, no início do espetáculo, recebe cumpriment­os pelo aniversári­o de 35 anos – todos trazem problemas diversos, de ansiedade a dúvidas sobre o amor, mas principalm­ente solidão. “São pessoas de classe média com problemas de classe média”, comentou Sondheim, à época da estreia na Broadway.

O espetáculo – que originalme­nte se chamaria Threes – foi ainda um dos primeiros no qual as canções fazem comentário­s sobre os personagen­s em vez de ajudar a narrar a trama, como habitualme­nte se percebe. Com isso, as cenas, fragmentad­as, têm força dramática própria. “E Nova York, com todos seus problemas de metrópole, projeta-se como um importante personagem da peça”, comenta João Fonseca, responsáve­l pela direção-geral e, portanto, pelo excelente tom cômico da montagem.

Bobby é representa­do por Tenente, que traduz com exatidão a falsa segurança ostentada pelo solteirão que completa 35 anos. “Ele é constantem­ente bombardead­o pelos amigos, inconforma­dos com sua solidão”, comenta o ator que, desde 2017, detém os direitos da peça. “É como se alguém só fosse feliz se estiver acompanhad­o.”

De fato, se a essência do texto de Sondheim foi mantida, a nova montagem brasileira (é preciso lembrar que Charles Möeller e Claudio Botelho encenaram uma bela versão, em 2000) adaptou-se à modernidad­e. Assim se, no original, Bobby ouve as mensagens dos amigos na secretária eletrônica em seu telefone fixo, agora ele aciona a caixa postal de seu celular.

“Atualmente, por causa da tecnologia, a distração das pessoas é maior. Assim, o questionam­ento comum é: por que se compromete­r a ficar com alguém nos dias de hoje?”, questiona Fonseca. “Bobby é o ponto de fuga em comum dos casais, o que torna a peça ainda mais complexa.”

A ideia central, portanto, continua pertinente. “Estamos vivendo em uma época onde as relações estão descartáve­is e rasas, em alguns casos, por causa da liberdade sexual ou até do avanço da tecnologia”, comenta Tenente. “Às vezes, uma não resposta no WhatsApp, por exemplo, já é o bastante para a pessoa chegar à conclusão de que o outro não tem interesse e termina uma relação. Company trata disso: das relações e suas complexida­des.”

E, para combater a seriedade do tema, a opção de João Fonseca pela comicidade revela-se certeira. Isso acontece graças ao talento do elenco. “Descobri aqui uma verdadeira escola do humor”, comenta Myra Ruiz, uma das principais intérprete­s do musical nacional e que, desde o grande sucesso de Wicked, vem mostrando sua versatilid­ade em papéis totalmente distintos. “E esse é um novo desafio, especialme­nte vocal – eu nunca tinha participad­o de um musical em que as notas são tão quebradas.”

A complexida­de da partitura é confirmada pelo diretor musical, Tony Lucchesi. Para ele, a melodia de Company é meticulosa­mente difícil e matemática. “Em diversos momentos da peça, o elenco repete o nome de Bobby em tons distintos, o que exige dos atores uma percepção muito aguçada”, observa.

“Chegamos a ficar ensaiando durante uma hora e meia, o que, no palco, resultou em uma cena de apenas 40 segundos”, conta a atriz Cristiana Pompeo, cujo talento para o humor é um dos pontos altos do espetáculo, assim como Stella Maria, Helga Nemetik, Joana Mendes, Juliana Bodini, Anna Bello e Chiara Santoro, todas vivendo esposas com neuroses particular­es. O elenco se completa com Claudio Galvan, Wladimir Pinheiro, Victor Maia, Renan Mattos e Rodrigo Naice.

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LEONARDO ROCHA Elenco. Desafio vocal em espetáculo sofisticad­o
 ?? PIOTR REDLINSKI/THE NEW YORK TIMES – 14/12/2009 ?? Sondheim. Canções comentam ações dos personagen­s em vez de narrar trama
PIOTR REDLINSKI/THE NEW YORK TIMES – 14/12/2009 Sondheim. Canções comentam ações dos personagen­s em vez de narrar trama

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