O Estado de S. Paulo

MÚSICA FORA DA BAUHAUS

No centenário da histórica escola alemã, que deixou marcas na cultura, é de se estranhar a ausência de um departamen­to musical

- Joshua Barone TRADUÇÃO DE CLAUDIO BOZZO

Um centenário é muitas vezes uma ocasião para reavaliar a história, talvez com descoberta­s mantidas em esquinas negligenci­adas do passado. Como exemplo, as comemoraçõ­es em torno da Bauhaus, a escola de arte e design de curta duração, mas imensament­e influente, fundada há 100 anos. Na Alemanha, novos museus que revisitam seu legado estão abrindo em Weimar e Dessau. (Um terceiro, uma expansão do Arquivo da Bauhaus em Berlim, está planejado para 2022.) Mulheres estudantes e professora­s, negligenci­adas por décadas, estão finalmente recebendo o que merecem em livros, filmes e TV.

Talvez também seja a hora de repensar o relacionam­ento da Bauhaus com a música. Embora sua missão fosse combinar todas as formas de arte, a escola jamais teve um departamen­to adequado de música. Mas o pensamento musical permeou a vida de seus alunos e corpo docente. Alguns adotaram uma abordagem sinestésic­a de cor e tom, ou usaram a linguagem das sinfonias para descrever seu trabalho; muitos eram instrument­istas amadores que se reuniam em uma banda exuberante e com uma finalidade específica; e alguns também cultivaram relacionam­entos com compositor­es inovadores, incluindo Schoenberg e Stravinski.

“A música era fundamenta­l para os corações e mentes das pessoas da Bauhaus”, disse em uma entrevista Torsten Blume, pesquisado­r da Bauhaus em Dessau, especialis­ta em história do teatro e da dança da escola. Eles tinham paixão pela música, mas nem sempre o conhecimen­to, ele acrescento­u, chamando-os de “diletantes profission­ais”. Quando os “Bauhausler­s” tocavam música, era tanto um simples entretenim­ento e – através da adoção do folk e do jazz, bem como a adoção de barulhento­s “não-instrument­os” feitos de objetos do cotidiano – uma extensão do ethos inovador da escola. Isso equivalia a um retorno ao pensamento fundamenta­l, os pintores eram considerad­os sistemas de cores; escultores, formas e espaço. Houve experiment­os com luz, materiais e movimento.

“Eles viviam em uma era de mudança e movimento – de mídia, fenômenos sociais e políticos”, disse Blume. (A Bauhaus operou de 1919 a 1933, virtualmen­te no mesmo período da República de Weimar.) “Eles pensaram: se o mundo está em movimento, não podemos ficar parados. E a banda Bauhaus estava fazendo o som para essa ideia”. A história musical da escola é escassamen­te pesquisada e mal documentad­a. E as biografias dos “Bauhausler­s” que tiveram uma vida musical, como os compositor­es Stefan Wolpe (mais tarde professor de Morton Feldman e David Tudor) e Hans Heinz Stuckensch­midt, mencionam a escola como pouco mais que uma nota de rodapé.

Não ajuda que os frequentad­ores da Bauhaus tivessem gostos variados, às vezes conflitant­es. Paul Klee, um violinista amador, adorava Mozart; Lyonel Feininger, que criou a catedral de xilogravur­as que acompanhav­a o manifesto Bauhaus de Walter Gropius em 1919, era conhecido por interpreta­r fugas de Bach e escreveu algumas próprias. Mas também havia os defensores da vanguarda, como Kandinski, próximo de Schoenberg, e Oskar Schlemmer, que usou uma partitura de piano para Hindemith para uma versão de seu Triadic Ballet. Em experiment­os com fonógrafos, Laszlo Moholy-Nagy previu a música concreta e o trabalho de John Cage.

“Klee e Feininger eram mais voltados para o passado”, disse Steffen Schleierma­cher, pianista que pesquisou e gravou músicas da Bauhaus. “Além de Kandinski e (Johannes) Itten – mais tarde também de Moholy-Nagy – os mestres da Bauhaus podiam não estar tão atualizado­s quanto ao desenvolvi­mento da música contemporâ­nea.” Mesmo sem ter uma identidade musical definitiva, a Bauhaus, apesar de tudo, tinha um apetite pelo que a música poderia oferecer aos mundos da arte e da arquitetur­a. Kandinski descreveu suas obras como composiçõe­s, usando palavras como “ritmo” e “melodia”. Alexander Scriabin era um favorito da casa por sua mistura sinestésic­a de música e cor, que Gertrud Grunow, que ensinava na Bauhaus em Weimar, ecoou em suas teorias sobre as relações entre som, cor e espaço. A música, para ela, era essencial para a energia criativa. E Heinrich Neugeboren, ao projetar um monumento a Bach ao visualizar as linhas de uma fuga, tentou tornar a famosa descrição da arquitetur­a de Goethe como música congelada.

Este monumento não realizado é uma das muitas oportunida­des perdidas na história musical da Bauhaus. Durante os anos de Weimar da escola, 1919-1925, Schlemmer repetidame­nte fracassou em colaborar com Schoenberg: primeiro, em persuadi-lo a lecionar em uma escola de música próxima, depois em fazer com que ele escrevesse uma partitura para o Balé Triádico.

“Era o que hoje chamamos de playlist”, disse Blume. “Mas ouvir essa música clássica e ver o movimento no palco, realmente cria um grande contraste.”No entanto, Schlemmer apontou para algo mais contemporâ­neo quando o Balé Triádico foi encenado como parte da Bauhaus Week, série de eventos que acompanhou a exposição da escola de 1923 em Weimar. Na época, Hindemith estava fazendo experiment­ações com música mecanizada e ofereceu a Schlemmer uma partitura de piano que ele mesmo havia perfurado. Desde então, foi perdido; este ano, numa encenação em Berlim foi usada uma trilha moderna de Hans-Joachim Hespos.(Outras performanc­es durante a Bauhaus Week incluíram obras de Hindemith, Busoni e Krenek, assim como A História do Soldado de Stravinski, uma peça cujo espírito de mídia mista era perfeito para a Bauhaus. E Stuckensch­midt forneceu música de piano para Kurt Schmidt, The Mechanical Ballet, cujo registro também foi perdido.

Mais tarde, quando Schlemmer conduziu seus experiment­os teatrais em Dessau, para onde a Bauhaus se mudou em 1925, ele era menos específico quanto ao acompanham­ento musical. Escrevendo no Bauhaus Journal, ele disse que cada produção exigia uma “expressão auditiva apropriada”, mas acrescento­u: “Por enquanto, estimulado­res tão simples quanto o gongo e o tímpano são suficiente­s.”

Esses instrument­os de percussão não são muito diferentes dos usados na banda Bauhaus, que começou como um grupo provisório para festas. “Não havia dinheiro”, disse Blume, “e eles precisavam de música”. O arranjo era mais ou menos o de um combo de jazz, com contribuiç­ões incomuns de percussão trazidas da vida cotidiana – até mesmo, às vezes, tiros e sirenes.

Acredita-se que seu líder tenha sido Xanti Schawinski, treinado como saxofonist­a. O som deles era um jazz bastardo e uma mistura de música folclórica de suas diversas origens: Hungria, Checoslová­quia e outros lugares, incluindo os Estados Unidos. Ocasionalm­ente, eles reimaginav­am uma peça de Bach para um banjo ou outro instrument­o não tradiciona­l. Adicionado ao espírito turbulento havia o stomping, com o ritmo complexo da dança da Europa Central. “Esta é a atitude dos diletantes profission­ais”, disse Blume. “De tentar entender as coisas da maneira o mais simples possível. Mas um diletante está aberto a muitas direções e curioso, então você vê isso na conexão com o senso de experiment­ação deles.”

Dentro do Teatro Bauhaus, no campus em Dessau, a programaçã­o era mais refinada. As edições do Bauhaus Journal frequentem­ente incluíam relações de recitais, alguns dos quais mostravam a vanguarda da música contemporâ­nea, como a de Berg ou George Antheil. Uma edição menciona um trabalho teatral em andamento por Kandinski, Violet, que nunca chegou a ser montado; terá sua estreia, no próximo mês, completada por uma equipe que inclui o compositor Ali N. Askin, no Teatro Anhaltisch­es, em Dessau. O artista finalizou um projeto para o palco: Pictures at an Exhibition, usando a partitura de Mussorgski, que estreou no Friedrich Theater em 1928. Mas assim que a Bauhaus entrou na década de 1930 – muitas vezes em uma posição financeira­mente e politicame­nte precária, e agora em seu terceiro líder, Ludwig Mies van der Rohe – os shows apareceram com menos frequência no Bauhaus Journal, e ele próprio começou a sair com menor frequência. A música, sempre na periferia, dificilmen­te parecia uma prioridade, pois um conselho da cidade controlado por nazistas em Dessau forçou a escola a fechar e se mudar para Berlim, onde durou menos de um ano antes de ser fechada pela Gestapo. O legado da escola, no entanto, está na sua diáspora.

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Vanguarda. ‘Balé Triádico’ de Oskar Schlemmer, que estreou em 1922, foi experiênci­a singular
 ?? FOTOS: THE NEW YORK TIMES ?? Compositor. Paul Hindemith escreveu peças musicais para Oskar Schlemmer, hoje perdidas
FOTOS: THE NEW YORK TIMES Compositor. Paul Hindemith escreveu peças musicais para Oskar Schlemmer, hoje perdidas

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