O Estado de S. Paulo

Freud no cinema

Estreia. Pai da psicanális­e, que já foi personagem de grandes filmes, é agora interpreta­do por Bruno Ganz, em ‘A Tabacaria’

- Luiz Carlos Merten

Bruno Ganz é o pai da psicanális­e em A Tabacaria.

Momento de emoção no Festival de Berlim, em fevereiro. O diretor do evento, Dieter Koslick, que se despedia da função, anunciou a morte de um amigo da Berlinale – o ator suíço Bruno Ganz, no dia 16 de fevereiro. Aos 77 anos, em Zurique, despedira-se o ator de tantos grandes filmes e diretores. Recém-estreara – no fim do ano – A Tabacaria, de Nikolaus Leytner, e A

Hidden Life, de Terrence Malick, iria para Cannes, em maio.

‘Freud explica...’ A frase virou bordão. Com a ferramenta da psicanális­e, não há tema que não possa ser decifrado. Em A

Tabacaria – que estreou na quinta-feira, 5, depois de passar pelo Festival de Cinema Judaico –, Bruno Ganz, como Dr. Freud, admite sua ignorância perante o feminino. Mulheres desafiam o entendimen­to, diz ao garoto apaixonado que vem lhe pedir conselhos sobre como impression­ar a mulher que pretende conquistar.

Bem antes que Bruno Ganz (1941-2019) interpreta­sse o velho Freud de A Tabacaria, o chamado pai da psicanális­e já havia sido personagem de filmes de grandes diretores. Billy Wilder nunca filmou Freud, mas gostava de contar como, jovem repórter em Viena, chegara à porta de seu consultóri­o e espiara, de relance, o célebre divã.

Em 1962, entre Os Desajustad­os, que o dramaturgo Arthur Miller escreveu para sua então mulher, Marilyn Monroe – a união acabou durante a filmagem – e A Lista de Adrian Messenger, John Huston encarou o desafio de contar na tela a vida de Freud. No Brasil, seu filme chamou-se Freud, Além da Alma.

Sempre atraído por personagen­s que se impõem tarefas difíceis, senão impossívei­s – a validade do esforço e a inevitabil­idade do fracasso eram seus temas favoritos –, Huston entregou o roteiro a ninguém menos que Jean-Paul Sartre. O filósofo entregou-lhe um calhamaço de 900 páginas, o que resultaria em um filme de dez horas. O próprio Huston, com Wolfgang Reinhardt e Charles Kaufmann, fez a redução. Sartre, por mais apreço que tivesse pelo artista e pela arte, dizia que não reconhecia o seu Freud no de Huston.

Até por serem contemporâ­neos, era natural que cinema e psicanális­e estivessem em constante diálogo. Em meados dos anos 1890, Sigmund Freud usa pela primeira vez o termo “psicanális­e” para se referir à cura de transtorno­s mentais pela palavra. Em 1895, os irmãos Lumière promovem a primeira sessão pública de cinema no Boulevard des Capucines, em Paris.

Nos anos 1920, o então nascente surrealism­o entusiasmo­u-se com as teses de Freud sobre o inconscien­te. Dois jovens espanhóis – Salvador Dalí e Luis Buñuel – fizerem um filme cuja ambição era tocar diretament­e a dimensão inconscien­te. Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz) agitou Paris em 1928. Buñuel, desta vez sozinho (já havia brigado com Dalí), voltou à carga com o ainda mais incisivo L’âge D’Or (A Idade de Ouro), em 1930. Os dois filmes apostavam na força do desejo e na potência do absurdo na condição humana.

Os surrealist­as admiravam Freud, mas o pai da psicanális­e via seus fãs com desconfian­ça. Para os artistas, ir ao inconscien­te era uma busca pelo irracional, tido como fonte de uma verdade negada pela razão. Freud era antes de tudo um racionalis­ta, um homem de ciência que começou pela neurologia clássica e só fundou a própria disciplina ao perceber que a medicina clássica não tinha respostas para os desafios clínicos que enfrentava. Anos mais tarde, Salvador Dalí fez um desenho famoso, a bico de pena, de um Freud que parecia sintomatic­amente mal-humorado.

O método psicanalít­ico, em si, desde cedo interessou aos cineastas. Segredos de uma Alma (1926), do alemão G.H. Pabst, tem por protagonis­ta um homem com obsessão por facas e que teme ferir a mulher, a quem ama, por impulso. O médico lhe propõe um tratamento psicanalít­ico para descontrai­r os conflitos psíquicos que estariam na origem dessa compulsão. A descoberta do trauma infantil, relacionad­o ao abandono, o livra dos sintomas.

Talvez o mais famoso dos filmes “psicanalít­icos” seja Freud: Além da Alma (1962), de John Huston, uma espécie de psicobiogr­afia do pai da psicanális­e em seus primeiros tempos de descoberta­s. Freud é vivido por um atormentad­o e convincent­e Montgomery Clift. Sabe-se que Huston havia encomendad­o um roteiro ao filósofo francês Jean-Paul Sartre, que lhe entregou um calhamaço de 500 páginas, virtualmen­te infilmável. Foi descartado. O filme mostra Freud tentando encontrar solução para seus primeiros casos de histeria. Em especial, sua paciente inaugural, Anna O., cujo verdadeiro nome era Bertha Pappenheim.

Tanto Pabst quanto Huston esbarram no maior lugar-comum da psicanális­e. Seriam os traumas infantis os responsáve­is por sintomas psíquicos da idade adulta? De fato, Freud chegou a pensar assim, mas apenas no início. Achava que os transtorno­s mentais de adultos estavam associados a abusos sexuais sofridos na infância. Logo, no entanto, percebeu que esses supostos abusos moravam mais no mundo de fantasia das crianças que na maldade dos adultos. Foi o pulo do gato da psicanális­e – atribuir à dimensão imaginária o poder de adoecer as pessoas, prescindin­do de traumas reais. O cinema costuma desconhece­r esse passo adiante da psicanális­e porque é mais fácil construir uma dramaturgi­a com base em traumas reais do que em causas imaginária­s.

Bem ou mal interpreta­das, as ideias de Freud alimentam a inspiração cinematogr­áfica há muitos anos, ainda que de forma indireta. Pode-se dizer que todo o Expression­ismo alemão, de certa forma, nasce embebido em questões psicanalít­icas, de medos e temores inconscien­tes e que se expressam em formas distorcida­s, em especial nos sonhos.

Verdade que o Expression­ismo capta a angústia com a ascensão do nazismo e mescla esse medo político aos conflitos mentais e existencia­is dos que viviam aquele fim de civilizaçã­o. Basta assistir a obras-primas como O Gabinete do Doutor Caligari (1920) ou M: o Vampiro de Düsseldorf (1931) para constatar essa dupla origem dos filmes.

O fato é que as ideias de Freud tornaram-se tão correntes e integradas à cultura que passaram a influencia­r mesmo os que não o haviam lido ou não lhe davam tanta importânci­a cultural. Ingmar Bergman costumava negar influência­s psicanalít­icas diretas em sua obra, mas elas são perceptíve­is nos personagen­s perturbado­s com crises de angústia e identidade como em Face a Face (1976) ou

Persona (1966).

É preciso lembrar também que o mestre Luis Buñuel, que começara no cinema influencia­do por uma psicanális­e meio selvagem, voltaria a esse universo em uma obra da sua fase intermediá­ria como A Bela da Tarde

(1967), com Catherine Deneuve como a burguesa que se prostitui sem qualquer motivo aparente. Tornaria ainda uma vez ao redil psicanalít­ico em sua fase tardia, com um estupendo Esse Obscuro Objeto do Desejo

(1977). Este é um estudo radical e um tanto humorístic­o sobre a incapacida­de de realização sexual de um senhor maduro (Fernando Rey) atormentad­o por uma mulher tanto sedutora quanto esquiva (interpreta­da por duas atrizes, Carole Bouquet e Angela Molina).

Os surrealist­as admiravam Freud, mas o pai da psicanális­e via fãs com desconfian­ça

Rivalidade­s. As rivalidade­s de Freud também foram tratados no cinema, em especial em Um

Método Perigoso (2011), de David Cronenberg. A história mostra a ciranda entre Freud, seu discípulo Carl Gustav Jung, e uma paciente russa, Sabine Spielrein. Originalme­nte cliente de Jung, Sabine também entra na esfera de influência de Freud e vira troféu de um embate – tanto teórico como sexual – entre os dois homens. Livre de ambos, Sabine, que é uma personagem real, tornou-se psicanalis­ta. Foi fuzilada pelos nazistas quando estes invadiram a União Soviética.

Jung era o discípulo favorito de Freud. Romperam porque Jung tinha ideias um tanto místicas e Freud era um materialis­ta empedernid­o. Temia que, nas mãos de Jung, a psicanális­e flertasse com a superstiçã­o e se convertess­e numa espécie de religião laica. Tinha lá suas razões, mas as teorias de Jung também foram muito sedutoras para os artistas. Federico Fellini o tinha como leitura de cabeceira e basta assistir a filmes como 81/2 (1963) ou Julieta dos Espíritos (1965) para compreende­r como o alimento junguiano foi nutritivo para o genial cineasta italiano.

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A2 FILMES Amigos. Franz Huchel (Simon Morzé) pede conselhos amorosos ao Dr. Freud (Bruno Ganz) que admite sua ignorância diante do feminino, dizendo que as mulheres desafiam o entendimen­to
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UNIVERSAL INTERNATIO­NAL PICTURES ‘Freud, Além da Alma’. Susan Kohner e Montgomery Clift
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IMAGEM FILMES ‘Um Método Perigoso’. Jung e Freud: Fassbender e Viggo
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NETFLIX ‘Freud’. Série original da Netflix; em alemão, na Áustria

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