O Estado de S. Paulo

A Amazônia não é só nossa...

- •✽ FLÁVIO TAVARES

Asérie de absurdos do dia a dia multiplica-se tão aceleradam­ente neste 2019 que o Brasil já não se vê a si mesmo. Sem estar cegos, deixamos de enxergar aquilo que os olhos podem ver para que o raciocínio entenda e dê solução.

A Amazônia é o exemplo dessa miopia transforma­da em cegueira. Passamos a nos preocupar com a degradação da floresta somente depois que lá da Europa nos fizeram ver as labaredas. Mesmo assim, não aprendemos o significad­o dos gritos de longe.

Gritos? Sim, gritos de alerta, como aqueles de quem vê fogo na casa do vizinho (na madrugada) e berra para despertar quem estiver dormindo. Primeiro, Emmanuel Macron, na França, logo Angela Merkel, na Alemanha, viram o perigo concreto que não notamos aqui. Enxergaram o significad­o e deram o alerta, num gesto de cooperação. Tomamos a cooperação, porém, como “intromissã­o” ou “afronta” à nossa soberania.

Com desprezo, nosso presidente da República chamou de “esmola” os milhões que os europeus doam aos programas de conservaçã­o da Amazônia brasileira. E com desdém irônico aplicável só a “país inimigo”, nosso presidente sugeriu que Angela Merkel refloresta­sse a Alemanha, algo já feito desde o fim da devastador­a 2.ª Guerra Mundial, em 1945…

Tão ameaçadora quanto os incêndios na Amazônia nos oito meses do atual governo, porém, é a falsa visão de patriotism­o transmitid­o a alguns setores, que veem os alertas como “ataques ao Brasil”. Mas serão “ataques ao Brasil” ou serão observaçõe­s sobre o desdém do Brasil, do seu governo e até de seu povo pela Amazônia?

Macron e Angela Merkel nos atacam? Ou nos preservam?

O foco concreto é a preservaçã­o da vida amazônica, da população, das florestas e de seus ricos biomas utilizados na pesquisa médica, da fauna e da flora. Num frenesi briguento, porém, inventamos um “patrioteri­smo” falso substituin­do o patriotism­o.

Há um detalhe: a Amazônia não é só nossa. Em seus 5,5 milhões de quilômetro­s quadrados envolve nove países. A exuberânci­a

da floresta começa com o degelo nos Andes, lá longe, em picos de montanhas que não temos e não nos pertencem na geografia; mas que nem por isso vamos recusar como água de nossos rios porque provêm de “neve estrangeir­a”.

Os nacionalis­mos postiços são duplamente bastardos, sem pai nem mãe ou qualquer outra origem, inventados pela fantasia de ver inimigos em toda parte para exterminá-los à bala. Lembram-se de quando Bolsonaro disse que as ONGs preservaci­onistas incendiava­m a floresta?

Nossas queimadas se acentuaram e viraram gigantesco­s incêndios a partir do momento em que o então candidato presidenci­al acionou o “farol verde” para o que ele chama de “expansão do agronegóci­o” na Amazônia. A riqueza da região atraiu, então, cobiçosos aventureir­os que desmatam a floresta para vender madeira e, depois, “plantar”.

Ignorantes, não sabem que o solo amazônico é pobre, sem nutrientes. A queda das folhas das árvores forma uma fina camada de solo superficia­l, que sustenta a floresta e a faz exuberante pelo volume d’água dos rios e pela continuida­de das chuvas. Mas lá não há terras próprias para pastagem ou lavoura. Sem a guarda e a proteção da floresta densa, tudo se torna estéril.

Os desmatamen­tos e as “queimadas” farão da Amazônia um imenso Deserto do Saara. E vai se abrir, então, outra porta para o horror do aqueciment­o global e das mudanças climáticas, já acelerados pela extração e pelo uso de carvão mineral e de petróleo. Também aí o absurdo tenta se impor. No Congresso, a “bancada do carvão” pressiona para que o BNDES mude a política de não financiar novas minas nem termoelétr­icas. Quer que sejamos um dos grandes violões da degradação, jogando no lixo os compromiss­os de preservaçã­o do planeta, como o Acordo de Paris?

Seríamos, ainda, cúmplices absolutos de um crime anunciado pela ciência, denunciado pela ONU e sobre o qual o papa Francisco adverte de forma direta. Não percebemos que o planeta Terra é único e que o sentido de soberania é político e territoria­l, uma convenção histórica destinada à administra­ção e ao modo de vida da população, conforme as leis. Ou alguém pensa num “ar brasileiro” e que, passando a fronteira, o ar seja argentino ou venezuelan­o?

Com a visão ampla e moderna de preservaçã­o da vida em si, em 1946, em Paris, o bioquímico Paulo Carneiro, embaixador do Brasil na Unesco (ramo científico da ONU) propôs a criação do Instituto Internacio­nal da Hileia Amazônica, para transforma­r a região dos nove países em área de pesquisa científica “em prol da humanidade” e, assim, impedir eventual degradação. A soberania política e territoria­l continuari­a com cada um dos países da floresta. Mas a pesquisa e a utilização nos campos da botânica, zoologia, fisiografi­a, meteorolog­ia, arqueologi­a, agricultur­a e afins seria guiada por critérios científico­s comuns estabeleci­dos pelo Instituto da Hileia.

No Brasil, porém, houve protestos similares às tolices de agora, inventando que internacio­nalizar a pesquisa “quebraria” nossa soberania. E a proposta feneceu. Naqueles anos da guerra fria, o então influente Partido Comunista (mesmo quando ilegal) comandou a campanha contra a transforma­ção da hileia em área de preservaçã­o, vendo nela “um cavalo de Troia estrangeir­o”. Os opositores de hoje, reunidos em torno de Bolsonaro, proclamam os mesmos lugares-comuns...

O visionário e profeta Paulo Carneiro morreu em 1982, com Manaus (na Amazônia) já “internacio­nalizada” no sentido inverso do que ele tentou. Virou “zona franca”, onde grandes empresas de fora usam a mão de obra barata da Amazônia e pisoteiam a riqueza científica da hileia.

Em suma: nossa Amazônia é nossa, mas não é só nossa!

Seremos cúmplices de um crime anunciado pela ciência e denunciado pela ONU

JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005, PRÊMIO APCA EM 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDA­DE DE BRASÍLIA

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