O Estado de S. Paulo

Isso passa

- •✽ FERNANDO GABEIRA ✽ JORNALISTA

As pesquisas sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro mostram claramente que o nível de expectativ­a em torno de um presidente é mais alto do que se supõe. Bolsonaro não acredita em pesquisas. Ele acha que sabe o caminho, não se importa muito com o que acontece na realidade. Navega com otimismo sobre a economia com base, sobretudo, na reforma da Previdênci­a. Ignora, talvez, que seus frutos demoram. E que o momento é muito delicado.

Lendo a história da renúncia de James Mattis, secretário da Defesa de Donald Trump, sinto que é possível estabelece­r um paralelo com a figura de Bolsonaro. Mattis é um general da Marinha, o mais respeitado dos Estados Unidos. Discordava de Trump e de sua política de afastament­o de alianças tradiciona­is.

Trump disse que Mattis estava parecendo democrata e que entendia da Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan) mais do que seu secretário da Defesa. Acontece que Mattis já foi o chefe supremo das forças da Otan.

Mattis teria dito a amigos que Trump tem dificuldad­es cognitivas. Mas talvez uma causa dessa dificuldad­e seja exatamente supor que saiba o que não estudou, não ouviu.

Para Mattis, o modelo é George Washington, para quem era necessário ouvir, aprender, ajudar e, depois, liderar. Na verdade, esse modelo de certa forma prevalece até a ascensão de líderes populistas. Hoje está em frangalhos, tanto aqui como nos EUA.

Bolsonaro anunciou que pretende anistiar os autores dos massacres do Carandiru e de Carajás. Vai se chocar com a lei. É um ato simbólico, pois há poucos presos.

No entanto, isso vai afundar mais a imagem do Brasil no exterior. Não porque as pessoas sejam defensoras ardorosas de direitos humanos, ou mesmo de esquerda ou de direita. É porque um marco civilizató­rio é rompido, entramos na fronteira da barbárie.

Segurança jurídica não significa licença para matar. De que adiantam a lei e o júri, se o presidente anistia?

Bolsonaro não vai mudar. Tenho lido notas em que ministros dizem que ele é assim mesmo, uma pessoa que diz o que pensa. Alguns afirmam que a economia está deslanchan­do e frases ditas aqui e ali não têm importânci­a. Ignoram o peso dessas frases na própria economia. E seguem no barco.

Mattis percebeu que era impossível manter a política de alianças dos Estados Unidos e simplesmen­te caiu fora. Não queria legitimar uma política que, apesar das aparências, enfraqueci­a o seu país.

Aqui, o governo marcha coeso para o isolamento. E escolheu, agora, a Amazônia como tema e a Igreja Católica como adversária.

O sínodo sobre a Amazônia traria como grande novidade a permissão para que padres casados atuassem na região. Mas o governo quer manter o foco em sua política ambiental, neste momento em que as chamas consomem parte da floresta.

A tese da ameaça à soberania pressupõe que a Europa não acredita no aqueciment­o global e viria explorar os recursos minerais da Região Amazônica. São bilhões de euros investidos numa economia de baixo carbono, dificilmen­te seu projeto estratégic­o seria liberar carbono na Amazônia. Seria execrado pelos eleitores.

Verdade é que Emmanuel Macron, presidente da França, em certo momento autorizou a exploração de ouro na Guiana Francesa, mas recuou diante da resistênci­a local.

A formulação brasileira sobre o desenvolvi­mento da Amazônia prevê que seja sustentáve­l e inclusivo. Isso poderia perfeitame­nte ser feito com a cooperação internacio­nal, sem perda de soberania.

No momento, fala-se em mineração, avanço sobre as terras indígenas. E o fogo das queimadas revela também o efeito de um intenso desmatamen­to.

O Brasil é soberano para adotar uma política de devastação da Amazônia. Mas haverá consequênc­ias, internas e externas. Não me parece razoável que os defensores de outro modelo sejam considerad­os adversário­s da soberania nacional.

Vamos enfrentar a realidade. Não se questiona a soberania, mas precisamen­te o que o governo está fazendo dela, como a exerce na prática. Tratase de um processo difícil, porque a tese da soberania desconfia de pesquisado­res, cientistas, e os remete para o outro lado da trincheira.

Voltamos à questão da dificuldad­e cognitiva na sua plenitude. É uma soberania que dispensa o conhecimen­to como uma das suas ferramenta­s. Ela se exerce na doutrina.

O mundo mudou e é impression­ante como o exercício mais comum no debate amazônico é apontar interesses ocultos dos atores. A Amazônia tem mesmo sua importânci­a para o mundo numa era em que se expandiu a preocupaçã­o ambiental – mas tudo isso fica em segundo plano. Se o Brasil levasse em conta essa realidade como um dos pontos centrais de sua posição no mundo, as coisas seriam bem melhores.

Mas não são.

O fato positivo é que as pessoas percebem, por diversas razões, que não estamos num bom caminho. Esse dado valida a tese de que é importante sempre apontar os erros sem buscar conflitos, pois é exatamente esse o estilo que favorece tanto Trump como Bolsonaro. E, enfim, acreditar na inteligênc­ia popular e no seu aprendizad­o, na possibilid­ade de as maiorias mais tolerantes retomarem as rédeas do País.

Há conservado­res que dizem que a política é a arte de confortar as pessoas diante da desolação do real. O estilo de Trump e de Bolsonaro vai na direção oposta: tornar o real insuportáv­el. São fenômenos novos, mas que as duas sociedades têm condições de tornar passageiro­s.

Aliás, para dizer a verdade, esta é uma frase que tenho ouvido com frequência, sobretudo entre pesquisado­res e cientistas que sabem o valor do conhecimen­to: “Isso passa”.

E nem sempre essa frase conota resignação. Ao contrário, anima.

Trump e Bolsonaro são fenômenos novos, mas suas sociedades podem torná-los passageiro­s

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