O Estado de S. Paulo

Luta pela liberdade

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Aescalada dos protestos pró-liberdade em Hong Kong levou a líder executiva do território chinês, Carrie Lam, a recuar e retirar um projeto de lei que autorizava a extradição de pessoas processada­s judicialme­nte para a China continenta­l. A apresentaç­ão do projeto de lei, em março, desencadeo­u uma onda de manifestaç­ões contrárias, na pior crise política na cidade em muitos anos.

Desde junho, aumentou a tensão no território chinês, que tem o status de Região Administra­tiva Especial dentro da política de “um país, dois sistemas”. Após o recuo de Lam, espera-se que os ânimos arrefeçam. Será muito difícil, porém, conter o desejo latente da população de Hong Kong por liberdade e democracia.

O aumento recente das tensões geopolític­as e econômicas entre a China e os Estados Unidos agravaram ainda mais a situação em Hong Kong. Pequim tem tratado dos protestos como uma questão de soberania e segurança nacional, não admitindo emitir ao mundo qualquer sinal de fraqueza ao lidar com a crise em seu território, ex-colônia britânica até 1997.

No final de agosto, a repressão aos protestos atingiu seu ápice. Pela primeira vez, a polícia de Hong Kong usou caminhões de jatos d’água e bombas de gás lacrimogên­eo contra os manifestan­tes pró-democracia, que revidaram com bombas incendiári­as.

Houve relatos de uso de arma de fogo por um agente público, mas sem feridos.

Em reunião com um grupo de empresário­s locais, Carrie Lam admitiu ter “um espaço de manobra muito limitado” para resolver a crise política, vale dizer, está totalmente submetida ao comando de Pequim, embora Hong Kong, oficialmen­te, goze de relativa autonomia política e, sob o ponto de vista econômico, aproxime-se bem mais dos países ocidentais.

Ao grupo, Lam afirmou ainda ter causado “um dano imperdoáve­l” ao apresentar o projeto de lei de extradição. O recuo foi um gesto prudente de quem, no mínimo, se mostra disposta a rever seus atos quando produzem “danos” tais como os observados em Hong Kong até agora.

O receio da população em relação ao projeto de lei, em boa hora retirado, deve-se ao fato de que a extradição, uma vez aprovada, submeteria os habitantes de Hong Kong aos tribunais chineses, que são controlado­s pelo Partido Comunista. Não é, portanto, um receio infundado. Como confiar na prevalênci­a de garantias processuai­s comezinhas em tribunais controlado­s por um regime de exceção?

A lei de extradição proposta por Carrie Lam foi apenas mais um gatilho para o início de uma nova série de protestos que tendem a continuar ocorrendo de tempos em tempos. Em 2014, vale lembrar, os habitantes de Hong Kong foram às ruas reivindica­r mudanças no sistema eleitoral, no que ficou conhecido como a “Revolta dos GuardaChuv­as”. Os atos levaram à queda do então líder executivo do território, Leung Chun-ying.

Ao fim e ao cabo, os habitantes de Hong Kong, um dos maiores centros financeiro­s da Ásia, lutam contra a distorção da política de “um país, dois sistemas” que foi pactuada à época da devolução da ex-colônia britânica aos chineses. Ela prevê liberdades no território que são impensávei­s para os cidadãos da China continenta­l, como direito ao voto para representa­ção legislativ­a. Ao longo dos anos, essas liberdades têm sido tolhidas por Pequim. Na prática, caminha-se para “um país, um sistema”, um sistema de censura, repressão violenta e supressão de liberdades, embora a China tenha se comprometi­do com o Reino Unido a manter os termos de “um país, dois sistemas” por 50 anos, ou seja, até 2047.

“Sabemos que esta é a última chance de lutarmos por ‘um país, dois sistemas’. Do contrário, o Partido Comunista da China vai invadir nossa cidade natal e controlar tudo. Se nos mantivermo­s fortes, podemos seguir com este movimento por justiça e democracia”, disse o engenheiro M. Sung, que tem participad­o das manifestaç­ões desde março.

Ninguém sabe como será a relação China-Hong Kong após 2047. O que se sabe é que até lá a liberdade terá de ser uma conquista diária.

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