O Estado de S. Paulo

Prevaleceu interesse dos agentes públicos e não do cidadão

- João Paulo Martinelli ✽ DOUTOR EM DIREITO PENAL (USP) E PÓS-DOUTOR EM DIREITO PELA UNIVERSIDA­DE DE COIMBRA

Opresident­e acatou as sugestões dos representa­ntes de entidades e deixou para o Congresso a derrubada dos vetos. Entre os vetos, alguns chamam a atenção. O primeiro é o veto ao art. 9o, que criminaliz­a a decretação de prisão fora das hipóteses previstas em lei.

Como é comum o juiz de primeira instância decretar prisão preventiva sem fundamento, se o tribunal revogar a prisão por falta de fundamento, isso poderia gerar responsabi­lidade penal de quem autorizou o confinamen­to. Também foi vetado o uso indevido de algemas. Já há uma súmula vinculante do STF que proíbe uso injustific­ado de algemas, portanto, o veto vai no sentido contrário da jurisprudê­ncia.

O art. 26 também chama a atenção pelo veto, pois proibia a autoridade de forjar flagrante para responsabi­lizar alguém que não praticaria o crime. Essa prática é proibida como obtenção de prova, mas poderia ser considerad­a crime. Outro ponto é o veto ao crime do art. 34, que criminaliz­a o agente que deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competênci­a

para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimen­to.

Ou seja, se o juiz tem conhecimen­to de que há erro numa decisão de prisão, por exemplo, e não a corrige, poderia ser responsabi­lizado criminalme­nte. Há outros pontos que merecem debate – que não houve –, mas fica claro que prevalecer­am os interesses dos agentes públicos em detrimento do cidadão.

Ninguém explicou em que medida o projeto poderia prejudicar o combate à corrupção. No entanto, as pessoas marginaliz­adas continuam mais vulnerávei­s ao abuso do Estado. O mais curioso é que o crime de desacato continua em vigência e utilizado por agentes públicos para inibir o cidadão descontent­e que quer se manifestar.

Não há paridade entre autoridade e pessoa comum. Nem sequer há interesse das entidades de classe em buscar essa paridade. Se o cidadão comum reclamar da atuação de um agente público, poderá ser preso por desacato, mas não poderá reclamar do abuso de autoridade.

Parece que a maior prova de que há abuso de autoridade é que magistrado­s e membros do Ministério Público não confiam em seus pares em eventual acusação.

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