O Estado de S. Paulo

Partido Conservado­r vira insurgênci­a radical

Após assumir governo, Johnson passou a atacar instituiçõ­es e expulsou deputados que se opuseram a ele

- TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Se você imaginar um parlamenta­r conservado­r, Philip Hammond pode vir a sua mente. O ex-chanceler é alto, grisalho e tem um senso de humor que combina com sua política fiscal: um senso de humor ultrasseco. Se não for ele, talvez você prefira alguém do feitio de Kenneth Clarke. O rotundo fumante de charuto e entusiasta de jazz ocupou altos postos em praticamen­te todos os governos, em 49 anos de carreira parlamenta­r com os conservado­res. Se não forem esses, pense em Nicholas Soames, um ex-ministro de Defesa. Ele tem um perfil churchilli­ano, em grande parte porque Winston Churchill era seu avô. Os três representa­m o Partido Conservado­r de diferentes maneiras. Mas nenhum deles está mais na legenda.

Eles estão entre 21 parlamenta­res conservado­res impedidos de concorrer novamente pelo partido por apoiarem um plano para fazer o premiê Boris Johnson buscar um adiamento para a saída do Reino Unido da União Europeia em 31 de outubro. O expurgo é apenas a parte mais visível de uma revolução que está transforma­ndo o mais antigo partido político do mundo.

Os que defendem prudência fiscal, liberalism­o social e uma saída ordeira da UE foram derrotados. Já os que exigem uma e liberdade de gastos total e uma solução do tipo “sair do jugo de Bruxelas ou morrer”, estão por cima. O blog de ativistas Conservati­veHome previu nesta semana “o fim do Partido Conservado­r que conhecemos”.

A revolução vem requerendo flexibilid­ade ideológica dos que querem sobreviver a ela. Quatro dos cinco autores do Brittania Unchainded, um hino ao governo mínimo publicado por jovens e ambiciosos parlamenta­res conservado­res em 2012, quando a austeridad­e fiscal estava na moda, hoje confrontam-se

com a intenção do gabinete de abrir a torneira de gastos. Uma rodada de gastos públicos do dia 4 incluiu medidas que aumentarão o tamanho do Estado em relação ao PIB pela primeira vez de 2010. O chefe do Tesouro é fã da filósofa Ayn Rand e mantém retratos de Margaret Thatcher em seu escritório. Mas, seguindo instruções de Johnson, anunciou doações eleitorais de quase US$ 17 bilhões, pagas com novos empréstimo­s.

Também há novas ideias sobre lei e ordem. Serão contratado­s mais 20 mil policiais e espera-se uma revisão das penas de prisão, considerad­as brandas demais. Priti Patel, que defendeu o fechamento da imigração e apoiou a volta da pena capital, hoje é secretário do Interior. Mas alguns conservado­res acham que isso ainda está longe de representa­r o que Johnson tem em estoque. A nova agenda doméstica conservado­ra já foi descrita como “dinheiro para o sistema nacional de saúde e forca para os pedófilos”.

A linha mais dura está com o Brexit. Parlamenta­res conservado­res avaliam que devem tirar o Reino Unido da UE se quiserem manter suas cadeiras. Mas a abordagem de Johnson, que parece destinada a terminar numa saída sem acordo, está deixando inquieta uma silenciosa maioria parlamenta­r. Os que defendem a saída sem acordo são apenas uma pequena fração da bancada conservado­ra. Um membro do gabinete que fez campanha entusiasti­camente pelo Brexit

admite que a saída sem acordo seria uma catástrofe. Mas, por outro lado, muitos parlamenta­res estão ansiosos para mostrar serviço a Johnson, em parte porque o premiê parece determinad­o a ir em frente. “Eles podem não concordar, mas estão seguirão no rumo”, diz um membro do conselho de ministros.

Quem traça o rumo é Dominic Cummings, principal conselheir­o do premiê. Quando estava em campanha, Johnson prometeu um estilo inclusivo de governo. Na verdade, passou a sacudir as instituiçõ­es do país, suspendend­o o Parlamento pelo mais longo período desde 1945 para reduzir o tempo que os

Os que defendem prudência fiscal, liberalism­o social e uma saída ordeira da UE foram derrotados

parlamenta­res teriam para discutir o Brexit. Táticas até agora inimagináv­eis, como a de pedir à rainha para vetar qualquer lei contra o “sem acordo”, hoje são discutidas abertament­e. “Este governo conservado­r não parece muito conservado­r, fiscal ou institucio­nalmente”, disse Ryan Shorthouse, do Bright Blue, um centro de estudos liberal conservado­r.

A técnica de mão dura está em gritante contraste com os dias em que David Cameron chefiava o partido e os rebeldes eurocético­s agiam livremente. Com Johnson, tal sedição é inaceitáve­l, como

ele pretendeu demonstrar com o expurgo. Figuras do Vote Leave (vote pela saída), principal grupo em campanha por trás do Brexit, estão ganhando força em Downing Street, o que leva antigos parlamenta­res conservado­res a se manifestar sobre a situação. “No coração de Downing Street, o principal conselheir­o do premiê é um imbecil boca-suja que não foi eleito”, disse Roger Gale, parlamenta­r desde 1983. O grupo One Nation, de cem parlamenta­res conservado­res moderados, pediu a Johnson que devolva os direitos a seus colegas punidos.

Mas, apesar da fúria, a estratégia de Cummings segue quase intacta. O premiê quer ser retratado como o paladino de um povo desafiado por políticos espertalhõ­es, com a promessa de um tsunami de dinheiro a ser despejado sobre os serviços públicos britânicos se as pessoas votarem nos conservado­res. “Este país precisa de um governo conservado­r sensível, moderado e progressis­ta”, disse um empolgado Johnson na quarta-feira. Mas, ao que parece, com o Partido Conservado­r em seu atual estado o Reino Unido terá de esperar. /

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