O Estado de S. Paulo

Zika infecta cérebro de adulto, diz estudo

Pesquisa da UFRJ ameaçada por cortes demonstrou efeito do vírus a longo prazo

- Roberta Jansen

O vírus da zika é capaz de infectar o tecido cerebral de adultos – e não apenas de fetos como se acreditava. Feito por pesquisado­res da Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um novo estudo explica complicaçõ­es neurológic­as apresentad­as por adultos durante o surto da doença em 2015. Alguns pacientes apresentar­am confusão mental, perda de memória e dificuldad­es motoras.

O trabalho foi publicado ontem na revista científica Nature

Communicat­ions. A descoberta revela que a infecção pode ter sérios desdobrame­ntos, ainda desconheci­dos, a longo prazo. Cortes de bolsas de pesquisa, no entanto, devem interrompe­r a sequência do estudo, segundo os cientistas envolvidos.

Pesquisado­res do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho infectaram com o vírus da zika amostras de tecido cerebral de adultos humanos. Para surpresa do grupo, o vírus se mostrou capaz de infectar neurônios e se multiplica­r. “Para tentar entender implicaçõe­s disso, passamos a usar camundongo­s”, disse Sérgio Teixeira Ferreira, um dos coordenado­res.

“Constatamo­s que a reação inflamatór­ia disparada no cérebro dos animais permanece muito depois de o vírus não estar mais presente. A inflamação provoca ainda a degeneraçã­o das sinapses (responsáve­is pela ligação entre os neurônios), interrompe­ndo a comunicaçã­o.”

Estudos feitos até hoje tinham comprovado que o vírus contraído por mulheres grávidas tinha causado má-formação do cérebro dos fetos. “Achávamos que o vírus infectava apenas os chamados precursore­s neuronais e os neurônios imaturos dos embriões em desenvolvi­mento”, disse Ferreira. “Agora constatamo­s que ele afeta também os tecidos adultos.”

Para o pesquisado­r, é necessário que a pesquisa tenha continuida­de e os adultos que apresentar­am sequelas neurológic­as sejam acompanhad­os. “Os bebês que nasceram com microcefal­ia estão sendo acompanhad­os, mas não sabemos o que aconteceu com os adultos”, disse o cientista. “Seria muito importante acompanhar também os adultos, investigar as consequênc­ias neurológic­as.”

Outra descoberta do estudo foi a de que um medicament­o anti-inflamatór­io atualmente usado no tratamento da artrite reumatoide pode amenizar problemas neurológic­os causados pelo vírus. Os cientistas acreditam que os achados podem contribuir para estabelece­r políticas públicas de tratamento e desenvolve­r novas terapias.

Recursos. A neurocient­ista Cláudia Pinto Figueiredo, da Faculdade de Farmácia da UFRJ, que também coordenou a pesquisa, teme pelo futuro do estudo diante dos cortes das bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o (CNPq) e da Coordenaçã­o de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “Com o corte dessas bolsas, ocorre uma paralisaçã­o de toda a ciência e tecnologia.”

A pesquisado­ra Fernanda Aragão, aluna do doutorado, que participou do estudo, já sabe que não conseguirá renovar o auxílio. “Eu tenho bolsa de doutorado até fevereiro, quando me formo”, explicou. “Mas não há previsão de novas indicações para bolsistas nas principais agências de fomento do Brasil. Então, não tenho perspectiv­a de conseguir uma bolsa de pósdoutora­do. Eu apliquei para editais que foram suspensos. Ou seja, não poderei continuar pesquisand­o.”

“Além da questão das bolsas”, ressalta Ferreira, “há uma redução dramática do financiame­nto às pesquisas; recursos para projetos já aprovados não vêm sendo pagos”. Para o cientista, a situação é gravíssima. “Esse estudo foi iniciado em 2016, mas, posso dizer que, se estivesse sendo iniciado hoje, não teríamos condições de concluir o trabalho.”

“Não há postos de pesquisado­res, só de professore­s. Quem ocupa postos de pesquisado­r são os alunos de mestrado, doutorado, pós-doutorado.” Cláudia Pinto Figueiredo NEUROCIENT­ISTA DA UFRJ

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