O Estado de S. Paulo

Riscos de uma aposta crucial

- •✽ ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

Aproposta orçamentár­ia para 2020 não deixa margem a dúvidas quanto à severidade da restrição fiscal que o governo federal terá de continuar a enfrentar, mesmo com a aprovação da reforma da Previdênci­a. O que se prevê é que, em 2020, o investimen­to público federal ficará reduzido a não mais que 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB), metade do nível já extremamen­te baixo observado em 2018.

Para assegurar a viabilidad­e de tal contração no esforço de formação de capital do governo, a equipe econômica conta com o sucesso da pesada aposta que vem fazendo no programa de privatizaç­ão e nas possibilid­ades de ampla substituiç­ão do investimen­to público por investimen­to privado em projetos

de infraestru­tura. Tanto o vigor da retomada da economia como as perspectiv­as de cresciment­o sustentado do País dependem em grande medida do sucesso dessa aposta.

Empenho, disposição e vontade política são requisitos fundamenta­is para que o programa de privatizaç­ão e os investimen­tos privados em projetos de infraestru­tura deslanchem tão logo quanto possível. E nada disso parece faltar ao governo. Mas há um ingredient­e adicional, essencial para o sucesso da aposta, a que o governo, por enquanto, não vem dando a devida atenção.

Ainda falta muito para que a incerteza regulatóri­a, inerente à privatizaç­ão de determinad­os segmentos do setor público e ao investimen­to em infraestru­tura, seja reduzida a níveis que não afugentem investidor­es. E não basta aprimorar as licitações e a legislação pertinente. É preciso dar lastro técnico, independên­cia e estabilida­de às agências reguladora­s para que possam de fato zelar, com isenção e previsibil­idade, pelo cumpriment­o, de parte a parte, dos contratos de concessão.

Dessa perspectiv­a, o que preocupa, de um lado, é o descaso com que o governo vem lidando com o desafio de dotar as agências reguladora­s de condições adequadas para bem desempenha­r o papel fundamenta­l que lhes cabe. E, de outro, os efeitos deletérios que a truculênci­a do estilo quem-manda-aqui-sou-eu do presidente da República vem tendo sobre a incerteza regulatóri­a.

O que não poderá aprontar numa mera agência reguladora um presidente que, sem maiores preocupaçõ­es com os limites institucio­nais de sua atuação, interfere com tamanha sem-cerimônia na Polícia Federal e na Secretaria da Receita Federal? Em que medida sua desastrada intervençã­o em decisões da Petrobrás sobre preços de derivados poderá vir a afetar a privatizaç­ão de refinarias?

Quanto ao descaso, sobram evidências. Um caso emblemátic­o é o do Conselho Administra­tivo de Defesa Econômica (Cade), principal órgão de proteção à concorrênc­ia do País, paralisado há meses pela vacância de 4 das 7 vagas do colegiado, sem maiores preocupaçõ­es com as decisões de investimen­to que vêm sendo entravadas. O governo chegou até a considerar a possibilid­ade de tripular o Cade com gente séria. Mas os nomes indicados acabaram frivolamen­te incinerado­s na pira do nepotismo, quando o Planalto se convenceu de que o loteamento das vagas a preencher aumentaria a chance de aprovação pelo Senado da indicação de Eduardo Bolsonaro para embaixador em Washington.

Não adianta fechar os olhos e tentar jogar o jogo do contente. Não haverá um surto de investimen­to privado em infraestru­tura sem que essas dificuldad­es sejam devidament­e superadas. Tampouco faz sentido arguir que não são dificuldad­es novas. Que já vinham sendo observadas em governos anteriores. E que a relação de Lula e Dilma com as agências reguladora­s também era extremamen­te problemáti­ca.

A diferença-chave a ter em mente é que nem Lula nem Dilma fizeram apostas tão pesadas nas possibilid­ades da privatizaç­ão e dos investimen­tos privados em infraestru­tura, como a que agora vem sendo feita pela equipe econômica de Bolsonaro. O plano de jogo era outro. Para o atual governo, é absolutame­nte crucial que as agências possam cumprir seu papel com independên­cia e competênci­a e que o risco regulatóri­o seja reduzido a níveis palatáveis. A dúvida é se Bolsonaro conseguirá se dar conta disso a tempo.

A relação de Lula e Dilma com as agências reguladora­s também era problemáti­ca

ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDA­DE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

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