O Estado de S. Paulo

A lei que ameaça o Uber

- PEDRO DORIA E-MAIL:COLUNA@PEDRODORIA.COM.BR TWITTER: @PEDRODORIA PEDRO DORIA ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Um projeto de lei que está tramitando agora no Senado da Califórnia pode representa­r a mais radical mudança imposta ao Vale do Silício nesta década. Caso passe, e tudo indica que passará, o governador Gavin Newsom já anunciou publicamen­te que vai sancioná-la. E, em essência, empresas como o Uber terão de conceder, a todos os motoristas do Estado, direitos trabalhist­as. Se a Califórnia, berço da indústria digital, fizer este movimento, o mundo inteiro a seguirá.

A proposta feita inicialmen­te pela Assembleia Legislativ­a do Estado é

tornar lei geral uma decisão restrita da Suprema Corte local. Para distinguir um empregado de um terceiriza­do será necessário responder a três perguntas.

Primeiro, o trabalhado­r não responde à contratant­e pela qualidade de seu serviço. Quando se contrata uma empresa de limpeza predial, por exemplo, queixas sobre o serviço são feitas à empresa. Não diretament­e aos faxineiros. Um aplicativo, por outro lado, cobra e pune os trabalhado­res de acordo com sua performanc­e.

Depois, o serviço prestado não é o meio fim de quem contrata. No exemplo da empresa que limpa, quem contrata é o prédio e seu negócio não é limpar. Quem busca um serviço de aplicativo quer aquele serviço específico — transporte, entrega de comida, não importa.

Por último, o trabalhado­r não pertence a uma atividade exercida, tradiciona­lmente, por profission­ais liberais. Especialme­nte aqueles a quem é exigida uma licença. O empreiteir­o contratado por uma construtor­a, por exemplo, pode trabalhar naquela obra, mas também em muitas outras, mesmo que ele seja um negócio de um homem só.

O resultado prático é que toda a gig economy é atingida. Este é o termo usado no Vale por negócios baseados em aplicativo­s. Gig é gíria para biscate, um serviço avulso, intermiten­te, um trabalho, não um emprego.

Quando os apps surgiram, sua lógica era um pouco diferente do que o serviço se tornou na prática. Em alguns casos, como o dos carros, o discurso era mesmo voltado para um biscate. Algo que quem dirige pode fazer fora do horário do trabalho para ganhar um dinheiro a mais. Noutros casos, como no de oferta de serviços — bombeiros hidráulico­s, eletricist­as, faxina etc. —, a intenção era juntar quem oferecia um serviço com o público.

No segundo caso, os diversos marketplac­es funcionam bem, ampliam mercado para quem oferece o serviço e fazem a vida de quem busca resolver um problema mais fácil.

Mas para Uber, Cabify, 99, nos EUA a Lyft, e outros tantos a coisa não é tão simples. Virou mesmo emprego, uma quantidade imensa de pessoas vive de dirigir os carros. Na Califórnia, há inúmeros casos de motoristas que literalmen­te vivem a ponto de dormir em seus carros.

O problema, aliás, não é o Uber. O que aconteceu nos últimos cinco a dez anos é que o processo de digitaliza­ção da economia engrenou e está à toda. A automação faz com que empresas possam operar com menos gente. Crises de modelo de negócios, em incontávei­s indústrias, faz com que outras tantas empresas se vejam obrigadas a demitir. Pela primeira vez na história, gente sai das universida­des com canudo na mão e sem perspectiv­a de emprego.

Mudanças assim são naturais. Fazem parte da história. Mas momentos assim da história tendem numa ponta a concentrar renda e, na outra, a precarizar a vida de uma quantidade muito grande de gente. No século 20, o período de transição da economia agrícola para industrial na Europa foi traumático e levou a governos totalitári­os de direita e de esquerda.

Será preciso amenizar os efeitos sociais da transição. E isto vai custar, às gigantes do Vale, um naco de seus ganhos.

Se a lei passar, o Uber terá de conceder direitos trabalhist­as a motoristas na Califórnia

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil