A lei que ameaça o Uber
Um projeto de lei que está tramitando agora no Senado da Califórnia pode representar a mais radical mudança imposta ao Vale do Silício nesta década. Caso passe, e tudo indica que passará, o governador Gavin Newsom já anunciou publicamente que vai sancioná-la. E, em essência, empresas como o Uber terão de conceder, a todos os motoristas do Estado, direitos trabalhistas. Se a Califórnia, berço da indústria digital, fizer este movimento, o mundo inteiro a seguirá.
A proposta feita inicialmente pela Assembleia Legislativa do Estado é
tornar lei geral uma decisão restrita da Suprema Corte local. Para distinguir um empregado de um terceirizado será necessário responder a três perguntas.
Primeiro, o trabalhador não responde à contratante pela qualidade de seu serviço. Quando se contrata uma empresa de limpeza predial, por exemplo, queixas sobre o serviço são feitas à empresa. Não diretamente aos faxineiros. Um aplicativo, por outro lado, cobra e pune os trabalhadores de acordo com sua performance.
Depois, o serviço prestado não é o meio fim de quem contrata. No exemplo da empresa que limpa, quem contrata é o prédio e seu negócio não é limpar. Quem busca um serviço de aplicativo quer aquele serviço específico — transporte, entrega de comida, não importa.
Por último, o trabalhador não pertence a uma atividade exercida, tradicionalmente, por profissionais liberais. Especialmente aqueles a quem é exigida uma licença. O empreiteiro contratado por uma construtora, por exemplo, pode trabalhar naquela obra, mas também em muitas outras, mesmo que ele seja um negócio de um homem só.
O resultado prático é que toda a gig economy é atingida. Este é o termo usado no Vale por negócios baseados em aplicativos. Gig é gíria para biscate, um serviço avulso, intermitente, um trabalho, não um emprego.
Quando os apps surgiram, sua lógica era um pouco diferente do que o serviço se tornou na prática. Em alguns casos, como o dos carros, o discurso era mesmo voltado para um biscate. Algo que quem dirige pode fazer fora do horário do trabalho para ganhar um dinheiro a mais. Noutros casos, como no de oferta de serviços — bombeiros hidráulicos, eletricistas, faxina etc. —, a intenção era juntar quem oferecia um serviço com o público.
No segundo caso, os diversos marketplaces funcionam bem, ampliam mercado para quem oferece o serviço e fazem a vida de quem busca resolver um problema mais fácil.
Mas para Uber, Cabify, 99, nos EUA a Lyft, e outros tantos a coisa não é tão simples. Virou mesmo emprego, uma quantidade imensa de pessoas vive de dirigir os carros. Na Califórnia, há inúmeros casos de motoristas que literalmente vivem a ponto de dormir em seus carros.
O problema, aliás, não é o Uber. O que aconteceu nos últimos cinco a dez anos é que o processo de digitalização da economia engrenou e está à toda. A automação faz com que empresas possam operar com menos gente. Crises de modelo de negócios, em incontáveis indústrias, faz com que outras tantas empresas se vejam obrigadas a demitir. Pela primeira vez na história, gente sai das universidades com canudo na mão e sem perspectiva de emprego.
Mudanças assim são naturais. Fazem parte da história. Mas momentos assim da história tendem numa ponta a concentrar renda e, na outra, a precarizar a vida de uma quantidade muito grande de gente. No século 20, o período de transição da economia agrícola para industrial na Europa foi traumático e levou a governos totalitários de direita e de esquerda.
Será preciso amenizar os efeitos sociais da transição. E isto vai custar, às gigantes do Vale, um naco de seus ganhos.
Se a lei passar, o Uber terá de conceder direitos trabalhistas a motoristas na Califórnia