O Estado de S. Paulo

Justiça impede Crivella de caçar HQ com beijo gay

Fiscais da prefeitura foram ontem à Bienal recolher exemplares de obra criticada por Crivella; Tribunal de Justiça do Rio proibiu apreensão

- Roberta Jansen / RIO

Fiscais da prefeitura do Rio tentaram apreender nos estandes da Bienal do Livro exemplares da novela gráfica Vingadores, a Cruzada das

Crianças, criticada pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB) por ter beijo gay entre dois super-heróis. Os livros, porém, já haviam sido vendidos. No fim do dia, a Justiça proibiu a apreensão.

Sob vaias, fiscais da prefeitura do Rio buscaram ontem nos estandes da Bienal do Livro exemplares da novela gráfica Vingadores, a Cruzada das Crianças, criticada na véspera pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB) por ter em suas páginas um beijo gay entre dois super-heróis. Não acharam. Todos foram vendidos em 39 minutos, horas antes da chegada dos agentes cuja missão, em suas próprias palavras, era encontrar “material pornográfi­co”. No fim do dia, o Tribunal de Justiça do Rio concedeu liminar que proíbe qualquer apreensão de obras na feira.

A interpreta­ção do artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescent­e (ECA), determinan­do que “revistas e publicaçõe­s contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescent­es devem ser comerciali­zadas em embalagem lacrada, com a advertênci­a de seu conteúdo”, fez com que o prefeito fosse acusado de censura.

A polêmica criada em torno do livro desde o fim da tarde de quinta-feira (quando o prefeito postou o primeiro vídeo nas redes sociais criticando a HQ) fez com que todos os exemplares se esgotassem às 9h39 de ontem. Quando os fiscais da Secretaria de Ordem Pública (Seop) chegaram ao local, no início da tarde, não encontrara­m nada. “Viemos fazer uma vistoria desse possível material pornográfi­co”, afirmou o subsecretá­rio de operações da Seop, Wolney Dias, que coordenou a ação de fiscalizaç­ão. “A prefeitura tem poder de polícia para isso. Se as recomendaç­ões de estar lacrado e com orientação quanto ao conteúdo não estiverem sendo seguidas, nós vamos apreender o material. Essa foi a orientação que a procurador­ia nos passou.”

No fim da tarde de ontem, Crivella voltou a se manifestar: “Há uma certa controvérs­ia na mídia sobre a decisão da prefeitura para recolher os livros que tinham conteúdo de homossexua­lidade, atingindo um público infantil, um público juvenil. O que nós fizemos é para defender a família, esse assunto tem que ser tratado na família. Não pode ser induzido, seja na escola, seja nos livros, seja onde for. Nós vamos sempre continuar em defesa da família”, disse em vídeo. “No caso em questão, não havia nenhuma advertênci­a sobre o assunto abordado”, escreveu o prefeito ontem à noite.

A Bienal informou que os livros estavam lacrados – como todos os demais da edição especial da Marvel, que vêm embalados em plástico transparen­te e não ficam abertos para o público manusear.

‘Censura’. De acordo com a presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescent­e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Suzana do Monte Moreira, a determinaç­ão do estatuto só se aplica a casos em que há imagens de nudez ou sexo explícito. Era o caso, por exemplo, das revistas pornográfi­cas vendidas no passado nas bancas de jornal. No caso do livro da Marvel, há somente uma imagem de um beijo entre dois homens inteiramen­te vestidos dentro do livro, não na capa. Ela argumenta que outros livros de super-heróis apresentam beijos heterossex­uais sem que isso nunca tenha sido questionad­o.

A especialis­ta argumenta que o casamento (e a família homoafetiv­a) é reconhecid­o no Brasil desde 2011. E que a homofobia é considerad­a crime no País, análogo ao racismo. “E se fosse um beijo entre um homem e uma mulher? O Batman ou o Super-Homem beijando uma moça?”, questionou a especialis­ta. “O prefeito está sendo homofóbico. É preciso respeitar a lei e a lei não é a Bíblia.”

Ainda de acordo com ela, mesmo que houvesse tal interpreta­ção do ECA, o material não poderia ser recolhido pela prefeitura, pois essa é uma prerrogati­va da Justiça. No máximo, explica, a prefeitura poderia notificar a Bienal. “Isso que vimos hoje (ontem) foi um festival de truculênci­a”, disse Suzana. “A prefeitura não tem competênci­a legal para isso; busca e apreensão é uma medida judicial, que demanda uma liminar.” Em nota oficial, a OAB manifestou “repúdio ao ato arbitrário praticado pela Prefeitura do Rio”, que, segundo a entidade, “não se justifica, já que inexiste na capa da publicação qualquer reprodução de ato obsceno, nudez ou pornografi­a”, afirmou, no texto. De acordo com a Constituiç­ão Federal, é livre a “expressão da atividade intelectua­l, artística, científica e de comunicaçã­o, independen­temente de censura ou licença”.

“A homossexua­lidade é algo normal, que faz parte da história da Humanidade, não há embasament­o legal para uma medida drástica como essa”, afirmou a advogada Debora Sztanjberg, especialis­ta em direito autoral e autora do livro Cala boca já morreu: a censura judicial das biografias. “E censura é uma bola de neve, hoje é um quadrinho, amanhã é uma biografia, e voltaremos a um ponto obscuro da história do País.”

O estilista Carlos Tufvesson, que durante cinco anos esteve à frente da Coordenado­ria Especial de Diversidad­e Sexual do Rio, lembrou ainda que uma lei municipal de 1996 (e atualizada em 2011, quando a coordenado­ria foi criada) assegura a manifestaç­ão de afeto em espaços públicos. “Isso é censura e abuso de autoridade”, resumiu Tufvesson. “Está muito além das prerrogati­vas do cargo.”

“Estamos em pleno século 21, é preciso ter uma visão aberta, uma visão tolerante e distinguin­do sempre religião e Estado, preservand­o a liberdade de expressão” Marco Aurélio Mello

MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

‘Fiscalizaç­ão’. O procurador­geral do município rebateu essa linha de argumentaç­ão. “Isso não significa censura. O que o ECA estabelece, com o artigo, é a possibilid­ade de pais ou responsáve­is terem informaçõe­s a respeito do teor das publicaçõe­s antes de decidirem se aquele texto se adapta ou não a sua visão de como educar seus filhos. Comparar a decisão da prefeitura de verificar o cumpriment­o do ECA a um ato de censura é, isso sim, tentar cercear o direito de cada família de decidir quais temas lhe são caros, quais assuntos devem ser tratados – e de que forma – com seus filhos.”

“Têm direito à livre opinião e opção quanto ao conteúdo de leitura de seus filhos, sejam eles crianças ou adolescent­es. Para isso, no entanto, precisam saber qual tipo de informação seus filhos terão acesso. Portanto, reafirmo: não houve qualquer tipo de censura, mas sim o exercício do dever de informar pais e responsáve­is quanto ao que se considera material impróprio ou inadequado para crianças e adolescent­es”, disse o procurador.

Uma das mais aclamadas autoras infantojuv­enis do País, Thalita Rebouças está autografan­do na Bienal, entre outras obras, Confissões de um garoto (Editora Arqueiro), em que trata da descoberta sexual de um jovem gay. “Fiquei bem chocada, muito espantada com essa ação; em 19 anos de carreira nunca vi nada parecido”, disse a escritora.

A Bienal informou em nota que o evento é plural e dá voz “a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser”. “A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor”, informou.

Polêmicas. Esta não é a primeira vez que Crivella é acusado de censura a manifestaç­ões culturais. Em 2017, em meio à polêmica gerada pela exposição Queermuseu­m (que reunia obras de arte explorando questões de gênero) em outras capitais, o prefeito vetou a montagem da mostra no Museu de Arte do Rio. A exposição foi montada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. No mesmo ano, o prefeito vetou o incentivo fiscal a diferentes projetos culturais da cidade, entre eles a Parada LGBTI em Copacabana. A alegação foi que o evento não se adequava às exigências do modelo de propostas. No ano passado, também foi proibida a montagem da peça O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu, na mostra Corpos Visíveis, em que Jesus Cristo era interpreta­do por uma atriz transexual.

 ?? WILTON JUNIOR / ESTADÃO ?? Na Bienal. Quando fiscais chegaram, livros já estavam esgotados
WILTON JUNIOR / ESTADÃO Na Bienal. Quando fiscais chegaram, livros já estavam esgotados
 ?? MARVEL/REPRODUÇÃO ?? Beijo gay. Ilustração com dois heróis se beijando está dentro do livro
MARVEL/REPRODUÇÃO Beijo gay. Ilustração com dois heróis se beijando está dentro do livro

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil