O Estado de S. Paulo

A escolha do procurador-geral

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São tempos de fato esquisitos. O cumpriment­o de uma competênci­a privativa do presidente foi visto por alguns procurador­es como afronta à autonomia do MPU.

São tempos de fato esquisitos. O estrito cumpriment­o de uma competênci­a privativa do presidente da República – a indicação de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República – foi visto por alguns procurador­es como uma afronta à autonomia do Ministério Público da União (MPU). A crítica em razão de a escolha do presidente Jair Bolsonaro não ter recaído sobre um dos três nomes apresentad­os por uma entidade privada indica a confusão instalada na cabeça de quem, por ofício, tem o dever de zelar pela ordem jurídica.

O Ministério Público deve, antes de tudo, respeito à lei. É o Direito que dá forma às instituiçõ­es públicas e regula sua autonomia. A Constituiç­ão Federal de 1988 é cristalina quanto ao preenchime­nto do cargo de procurador-geral da República. “Compete privativam­ente ao Presidente da República nomear, após aprovação pelo Senado Federal, (...) o Procurador-Geral da República”, diz o art. 84, XVI.

A Carta Magna também define quais as condições que o presidente da República deverá seguir nessa indicação. “O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador­Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrante­s da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução”, estabelece o art. 128, I da Constituiç­ão.

Não obstante o caráter cristalino desses preceitos constituci­onais, vem de longa data a tentativa de alguns integrante­s do Ministério Público Federal de impor ao presidente da República novas condições para a indicação do procurador-geral da República, além das duas previstas na Constituiç­ão – ser integrante da carreira e ter mais de 35 anos. Ilegal constrangi­mento é, por exemplo, a tentativa de limitar a escolha presidenci­al a um dos três nomes da lista redigida pela Associação Nacional dos Procurador­es da República (ANPR).

Trata-se de um verdadeiro absurdo jurídico que, de tanto ser repetido, parece ter adquirido status de verdade. Não há nenhuma previsão legal para que o presidente da República fique restrito, na indicação do procurador-geral da República, à lista tríplice redigida pela ANPR. No entanto, alguns procurador­es alardeiam precisamen­te o contrário, como se a escolha fora da lista desrespeit­asse o Ministério Público. “A autonomia institucio­nal do Ministério Público Federal corre claro risco de enfraqueci­mento diante da desconside­ração da lista tríplice”, disse o subprocura­dor-geral Mário Bonsaglia ao Estado.

Esse raciocínio é perigoso, pois coloca em risco precisamen­te a autonomia do Ministério Público. Tendo em vista que a lei não prevê a tal lista tríplice da ANPR, restringir a escolha do procurador-geral da República à lista tríplice é sujeitar a instituiçã­o – que é órgão de Estado e deve servir a toda a sociedade – ao capricho de alguns de seus membros.

A autonomia do Ministério Público está precisamen­te em subordinar o seu funcioname­nto apenas à lei. E a lei leva muito a sério essa autonomia. Basta ver que a Constituiç­ão define que o procurador-geral da República só pode ser destituído antes do término do mandato mediante a autorizaçã­o da maioria absoluta do Senado Federal.

Nos últimos anos, no entanto, tem-se visto a insistente tentativa de capturar o Ministério Público para finalidade­s corporativ­as. E a manobra consiste, precisamen­te, em transforma­r a autonomia da instituiçã­o em sinônimo de irrestrita subordinaç­ão aos desejos de seus membros. Assim, em vez de ser uma instituiçã­o republican­a, o Ministério Público adquire contornos de corporação de ofício, de sindicato. São realidades muito distintas.

O País precisa de um Ministério Público verdadeira­mente autônomo, sujeito apenas à lei. Ele não deve estar subordinad­o a nenhum interesse particular – seja do presidente da República, seja de um grupo de procurador­es, seja de uma entidade associativ­a. Apenas assim, sem nenhum cabresto imposto por manobras corporativ­as, é que o Ministério Público terá condições de cumprir sua constituci­onal incumbênci­a de defesa da ordem jurídica. Aqui não cabem transigênc­ias.

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