O Estado de S. Paulo

Morrer de amor

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Morrer de amor não é uma experiênci­a totalmente estranha ao ser humano. Quem foi infectado por uma grande paixão sabe. São noites intermináv­eis de sexo ininterrup­to, intimidade­s, longas conversas entremeada­s por sonecas profundas e pouco de alimento. Geralmente resultam em perda de peso, uma prostração deliciosa e um desligamen­to da realidade que pode durar semanas.

A biologia por trás desse estado físico e mental é pouco conhecida, mas sua função é clara: garantir o nascimento da próxima geração e a formação de um laço afetivo capaz de aumentar as chances de sobrevivên­cia da prole. A lua-de-mel é o espaço criado há séculos para permitir

que esse estado físico e mental pudesse ser vivido sem as interferên­cias do cotidiano. Claro que tudo isso muitas vezes dava errado, como continua a dar até hoje. Mas essa é uma parte importante de nosso ciclo reprodutiv­o.

O interessan­te é que existem mamíferos em que esse comportame­nto é levado ao extremo, e os animais simplesmen­te morrem ao fim da paixão. É o caso de um marsupial que vive nos desertos do noroeste da Austrália, chamado Dasykaluta rosamondae. Os machos vivem um ano. Após sair da bolsa da mãe, rapidament­e atingem seu tamanho final e, a partir desse momento, seus testículos crescem e a produção de espermatoz­oides é altíssima. Esses espermatoz­oides são estocados, uma vez que ele não tem relações sexuais. Após alguns meses, uma alteração hormonal provoca interrupçã­o da produção e o animal, que era dócil, se torna arisco por duas semanas.

Aí chega a última semana do inverno e a primeira da primavera. Todas as fêmeas entram no cio simultanea­mente e se inicia uma fase de intensa atividade sexual. Os machos passam duas semanas copulando até 14 horas por dia. Múltiplos machos copulam com cada fêmea e cada macho copula com inúmeras fêmeas. Nesse período, os animais não se alimentam e se dedicam apenas ao sexo. Orgia desenfread­a.

Ao fim, os machos estão exaustos, largados por todos os lados, subnutrido­s. O estresse causado por essa atividade frenética e pelos altos níveis de cortisol no sangue faz com que eles comecem a ter hemorragia­s no estômago (algo semelhante a úlceras) e no intestino, que acabam levando todos – sim, todos – os machos à morte em alguns dias. Uma semana depois, toda a população é constituíd­a por fêmeas.

Testes de paternidad­e mostram que em praticamen­te todas as fêmeas os 4 a 8 filhotes são de diferentes pais. Durante as duas semanas de paixão desenfread­a, as fêmeas estocam o sêmen dos diferentes machos em uma espécie de saquinho onde os espermatoz­oides se misturam e são usados para fecundar os óvulos. Enquanto os machos duram só um ano e um ciclo reprodutiv­o, as fêmeas vivem alguns anos desfrutand­o de uma nova geração de machos louca e mortalment­e apaixonada.

Cientistas acreditam que esse comportame­nto surgiu pelas condições climáticas no deserto. Nesse ambiente há um período muito curto (algumas semanas) em que o alimento é suficiente­mente abundante. Isso levou as fêmeas a entrar no cio e ovular ao mesmo tempo. Para elas é essencial que fiquem prenhes quando o alimento está disponível e a estratégia é copular com muitos machos. Para os machos a única chance de passar adiante seus genes é copular nessas duas semanas. É tudo ou nada! Como isso vale para todos, surge a competição louca entre eles, todos tentando espalhar pelo maior número de vaginas a enorme quantidade de espermatoz­oides que produziram. A necessidad­e de reproduzir é tão forte que vale a pena gastar todas as energias nas duas semanas e depois morrer de exaustão.

Esse comportame­nto demonstra como o instinto reprodutiv­o é forte. No nosso caso é tão forte quanto, mas as fêmeas “escondem” seu período fértil (praticamen­te não existe cio). Como as fêmeas humanas possuem 12 períodos férteis ao longo do ano, e aceitam copular mesmo fora do período fértil, a estratégia dos machos é diferente. Imagine se todas as mulheres do planeta só copulassem durante uma semana por ano. Seria uma semana de loucura que deixaria o carnaval no chinelo.

Marsupial da Austrália não sobrevive após duas semanas de orgia desenfread­a

MAIS INFORMAÇÕE­S: MALE SEMELPARIT­Y AND MULTIPLE PATERNITY CONFIRMED IN AN ARID-ZONE DASYURID. JOURNAL OF ZOOLOGY HTTPS://DOI.ORG/10.1111/JZO.12672 2019

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