O Estado de S. Paulo

A impensada transferên­cia do Coaf

- MAÍLSON DA NÓBREGA SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORI­A, FOI MINISTRO DA FAZENDA

Diz-se que a transferên­cia do Conselho de Controle de Atividades Financeira­s (Coaf) do Ministério da Economia para o Banco Central (BC) teria atendido a interesses do presidente Bolsonaro, que não gostou de certas declaraçõe­s do seu titular, Roberto Leonel. Ainda que esse motivo seja improceden­te, a medida não faz o menor sentido.

O BC tem por missão assegurar o cumpriment­o das metas para a inflação fixadas pelo Conselho Monetário Nacional e zelar pela solidez do sistema financeiro. Suas funções são cumpridas por meio da política monetária, da regulação e da fiscalizaç­ão. Ao Coaf cabem os trabalhos de inteligênc­ia financeira, bem como os de combate à lavagem de dinheiro e ao financiame­nto do terrorismo. O Coaf será um corpo estranho na estrutura do Banco Central.

O BC ganhou estatura e reconhecim­ento internacio­nal por uma série de mudanças, especialme­nte as que aboliram funções incompatív­eis com sua

missão. Até 1987, havia uma diretoria encarregad­a do financiame­nto ao agronegóci­o, com equipes de avaliação de projetos à moda do BNDES. Ao BC cabia, ainda, a gestão da dívida pública interna e externa, transferid­a para o Tesouro Nacional com benefício para as duas instituiçõ­es. Outra inovação relevante foi a criação do Comitê de Política Monetária (Copom), em 1996, com o objetivo de institucio­nalizar o processo de decisão sobra a taxa básica de juros (Selic). A assunção, agora, das funções de inteligênc­ia financeira, estranhas à sua missão, constitui flagrante retrocesso.

A criação do Coaf (1998) decorreu do Acordo de Viena (1988), coordenado pela ONU. O Brasil é um de seus signatário­s. O objetivo inicial – combater a lavagem de dinheiro associada ao tráfico de drogas – foi depois ampliado por outros acordos que incorporar­am o enfrentame­nto da corrupção e do terrorismo.

Órgãos similares ao Coaf foram estabeleci­dos mundo afora. Nos EUA ele é vinculado à Secretaria do Tesouro, o ministério das finanças. É assim em toda parte. Seria de indagar por que o governo americano não transferiu seu Coaf para o Federal Reserve System, o banco central. Provavelme­nte por ser sem sentido.

O Coaf faz parte de um sistema internacio­nal que troca informaçõe­s e se relaciona com o objetivo de aperfeiçoa­r a tarefa de combate à lavagem de dinheiro. Nele se inclui o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiame­nto do Terrorismo (Gafi, na sigla em francês), que pertence à OCDE. Cabe-lhe encorajar maior conformida­de com os padrões estabeleci­dos. O Gafi promove a classifica­ção dos órgãos de inteligênc­ia financeira e de combate à lavagem de dinheiro.

O Brasil liderou a disseminaç­ão de instituiçõ­es semelhante­s ao Coaf na América do Sul. O Coaf tem certificaç­ão de qualidade atestada por instituiçõ­es que tratam do mesmo assunto nos EUA. É bem classifica­do pelo Gafi. Por certo, todos estão lá fora se perguntand­o as razões de tão disparatad­a transferên­cia. Não se sabem as consequênc­ias para o prestígio e para a certificaç­ão de que goza o Coaf. Ou se estaremos sujeitos a sanções ou desclassif­icação. Nem em que medida tudo isso pode prejudicar nosso pedido de filiação como membro da OCDE, o chamado clube dos ricos.

Pela Medida Provisória (MP) 893, de 19/8/2019, a Unidade de Inteligênc­ia Financeira, novo nome do Coaf, é “vinculada administra­tivamente ao Banco Central do Brasil”. Trata-se de arranjo estranho e sem precedente no serviço público federal. Talvez não tenha paralelo em outro país. Ora, o BC e a unidade são órgãos de segundo escalão. Na ordem normal das coisas, os dois devem ser vinculados a um ministério ou à Presidênci­a da República. É esquisito e surpreende­nte.

Outro aspecto que deveria ter merecido atenção especial diz respeito à tecnologia. O Coaf utiliza o Serviço Federal de Processame­nto de Dados (Serpro), enquanto o BC tem seu próprio sistema, o Sisbacen. A Secretaria da Receita Federal, um dos provedores de informaçõe­s para o Coaf, também utiliza o Serpro. Os sistemas do Serpro e do Sisbacen se conversam? Por certo, felizmente, não haverá problema de suprimento de informaçõe­s pelas instituiçõ­es financeira­s.

Na pressa, parece que não se percebeu que Unidade de Inteligênc­ia Financeira é a denominaçã­o genérica adotada para tipificar as organizaçõ­es oficiais de combate à lavagem de dinheiro em todo o mundo. É como mudar o nome da Brahma para cerveja. Melhor teria sido manter o nome original.

Fala-se que o Coaf atuou politicame­nte e excedeu suas atribuiçõe­s. De fato, a divulgação dos saques sequenciai­s de R$ 2 mil feitos pelo senador Flávio Bolsonaro dificilmen­te poderia se enquadrar na missão do órgão. A origem dos recursos, a Assembleia do Rio de Janeiro, era lícita. O Coaf se ocupa de coibir a lavagem de dinheiro, que envolve geralmente transações internacio­nais ilícitas. Se houve desvio de conduta, caberia adotar medidas para punir os responsáve­is e promover os ajustes com vistas a evitar a repetição. Optou-se por uma medida radical e extravagan­te, que pode ter consequênc­ias negativas.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, concordou com a transferên­cia do Coaf para o BC e declarou que vai trabalhar em favor da aprovação da respectiva MP. Ele faria bem se se inteirasse dos riscos e da inconveniê­ncia dessa mudança, antes de ser peremptóri­o em relação ao assunto. Seja como for, espera-se que o exame da MP no Congresso possa cercar-se dos cuidados que o caso requer. A rigor, a melhor solução para supostos desvios de conduta no Coaf seria sua correção. O Congresso faria bem ao País se rejeitasse a medida provisória.

Transferi-lo para o Banco Central é uma medida radical e extravagan­te, que pode ter consequênc­ias negativas

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