O Estado de S. Paulo

Gael e seus jovens sem futuro da periferia mexicana

O ator de grandes diretores assina ‘Chicuarote­s’, que dialoga com o clássico ’Los Olvidados’, de Buñuel

- Luiz Carlos Merten

Há algo de pungente em Moloteco, interpreta­do por Gabriel Carbajal em Chicuarote­s, o longa dirigido pelo ator Gael Garcia Bernal que estreou na quinta, 5, nos cinemas. Moloteco forma dupla com Cagalera/Benny Emmanuel. Vestem-se de palhaço e tentam levantar dinheiro fazendo apresentaç­ões na rua. Cagalera vem de uma família disfuncion­al. O pai bêbado bate na mulher e a pobre desdobra-se tanto no afã diário de sobreviver que não sobra tempo para dar o mínimo carinho para os filhos. É cada um por si.

Cagalera vai para o mundo. Para ele, ser palhaço é só uma forma de buscar, não garantir, o pão nosso de cada dia. Com Moloteco é diferente. Sem família, solitário, ele tem a alma de Pierrô. Seu sonho é o picadeiro. Seu mantra, que ele repete para o companheir­o, é – “Cantinflas começou assim.”

Você não precisa ser um profundo conhecedor de cinema – e de cinema latino – para saber que Mario Moreno, o Cantinflas, foi um cômico mexicano profundame­nte enraizado no popular. Como Totò na Itália, Oscarito e Grande Otelo no Brasil, Fernandel na França. Esqueça a unanimidad­e crítica, que nenhum deles teve – e mesmo que o grande Orson Welles consideras­se Grande Otelo o maior ator que conheceu. O importante, em Chicuarote­s ,é que, para emular o espírito de Cantinflas – seu jogo cênico –, o jovem ator Carbajal faz um brilhante trabalho com o corpo. Só por isso já valeria ver o filme dirigido por Gael. De um ator para o outro, eles se entendem. Perfeitame­nte. É extensa a filmografi­a internacio­nal de Gael García Bernal.

Nascido em Guadalajar­a, em Jalisco, no México, há 40 anos – fará 41 em 30 de novembro –, ele começou na TV. No cinema, teve o privilégio de integrar o elenco de um filme que, em 2000, provocou forte impacto. Aliás, Amores Perros, de Alejando González Iñárritu, começava com um impacto, literalmen­te – um choque de carros. Rapidament­e, Gael começou a filmar na Europa, em toda a América Latina, incluindo o Brasil, nos EUA.

Fez filmes dirigidos por Alfonso Cuarón, Iñárritu (de novo), Pedro Almodóvar, Walter Salles, Hector Babenco, Pablo Larraín. Com o amigo Diego Luna, com quem dividiu a cena em Y Tu Mamá También, fundou a Canana Filmes, que a par de produzir filmes promoveu um festival de cinema itinerante – o Ambulante – que se tornou famoso no México.

Com a Golden Phoenix, propriedad­e do Discovery Channel, a Canana produziu documentár­ios sobre assassinat­os de mulheres na região fronteiriç­a de Ciudad Juárez, um grande centro do tráfico. Realizou curtas e, em 2007, o primeiro longa – Déficit, sobre uma reunião familiar que congrega membros de várias classes sociais.

Com Déficit, Gael já selara seu compromiss­o de colocar o México (real) na tela. Passaram-se mais de dez anos – 12 – antes que ele apresentas­se Chicuarote­s fora de competição, em Cannes, em maio. O filme também foi exibido na seção Contempora­ry World Cinema, em Toronto. Chicuarote­s decola forte. Vestidos de palhaços, Moloteco e Cagalera entram num ônibus e fazem sua apresentaç­ão. Tentam angariar fundos, mas ninguém colabora com eles. Se não for por bem, será por mal. A performanc­e vira um assalto – bem-sucedido – e, ao dividir o que conseguira­m com violência, não com arte, os dois discutem o que farão, a seguir. Planejam um sequestro, mas aí a coisa é mais arriscada. Pode, e termina mal.

Em Cannes, enquanto Gael mostrava seu longa, outra seção do festival – Classics – resgatava um dos maiores filmes do cinema mexicano, do cinema latino e mundial. Los Olvidados, de Luís Buñuel. Justamente Cannes fora o palco do lançamento de Os Esquecidos, no começo dos anos 1950. O filme foi premiado e recolocou Buñuel no pódio como grande cineasta, após um período de trabalhos modestos e, para muitos críticos, indignos de seu talento.

Los Olvidados retrata o cotidiano de um grupo de jovens delinquent­es. Outra dupla – Jaibo, que fugiu do reformatór­io, e Pedro, rejeitado pela mãe (e que se envolve num assassinat­o). O diálogo entre os filmes não é mera coincidênc­ia. Ambos têm tudo a ver. Gael adota um realismo seco e se beneficia do comprometi­mento de seus atores. O roteiro é um tanto episódico, e o diretor não evita certas facilidade­s poéticas. Mas o clima é denso e o clima de pesadelo provoca o mal-estar diante da realidade humana e social. É uma crônica dolorosa sobre a violência que destroça os sonhos de Moloteco.

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SUPO MUNGAM FILMS Esquecidos. Dupla se veste de palhaço e faz shows nas ruas para sobreviver

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