O Estado de S. Paulo

‘Estou velha demais para ter medo’, diz Atwood

Autora fala sobre a sequência de ‘O Conto da Aia’, o livro ‘The Testaments’

- / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Margaret Atwood não estava certa da continuaçã­o de O Conto da Aia, mesmo com os fãs clamando por ela. “O que eles estavam implorando era por uma continuaçã­o na voz de Offred, que eu não conseguia fazer”, disse ela tomando chá e suco numa cafeteria perto de sua casa. “Você consegue escalar o Empire State Building de mãos vazias uma vez. Quando tenta novamente, você cai. Era algo extremamen­te improvável, para começar. Ela disse o que tinha de dizer. Não havia nada que pudesse de fato adicionar.”

Mas há alguns anos Margaret começou a imaginar a continuaçã­o de seu clássico distópico de 1985 sobre as mulheres de Gilead, uma autocracia religiosa que teria sido anteriorme­nte os Estados Unidos, onde mulheres férteis são sujeitas a estupros ritualizad­os e forçadas a dar à luz filhos para cidadãos da classe alta.

Entre aquela época e hoje, O Conto da Aia se tornou um fenômeno da cultura pop, um grito de guerra político e uma série de TV do Hulu estrelada por Elizabeth Moss no papel de Offred, a narradora. A edição em língua inglesa do romance vendeu mais de oito milhões de exemplares no mundo todo. Mulheres vestidas como aias inundaram o Congresso e parlamento­s estaduais para protestar contra novas restrições aos seus direitos de reprodução. As expectativ­as de uma continuaçã­o do romance, que este mês já foi incluída na primeira lista de indicados para o Booker Prize antes do lançamento do livro na terça, 3, eram estratosfé­ricas.

Além dessas pressões, o fato é que uma sequência de O Conto da Aia já existe. A adaptação para a TV, criada por Bruce Miller, estendeu a saga de Offred para além do romance. Assim, Atwood e Miller tiveram de calibrar a trama e o desenvolvi­mento da personagem na série, para que ela não ficasse em desacordo com a continuaçã­o escrita por Atwood, ou vice-versa. “Tive de ser cuidadoso quanto à direção que estava seguindo. Ela controla o mundo”, disse Miller.

A sequência, The Testaments, tem lugar 15 anos depois do fim de O Conto da Aia, quando Offred é levada numa van preta. A continuaçã­o tem duas novas narradoras: uma jovem que cresceu em Gilead e uma adolescent­e canadense que escapou do regime ainda criança – e uma terceira que é familiar para os fãs, pois apareceu no romance e na série: Tia Lydia, a aterroriza­nte arquiteta do sistema de Gilead, que treina as mulheres para sua servidão reprodutiv­a.

À medida que suas histórias entrelaçad­as se sobrepõem, Atwood revela novas facetas de como a estrutura de poder de Gilead se constituiu e como ela finalmente desmorona. (A adaptação de The Testaments para a TV está em curso.)

Margaret Atwood, que completará 80 anos em 18 de novembro, falou da sua obra, de mortalidad­e e da surpreende­nte premonição de O Conto da Aia. Abaixo trechos da entrevista.

Quando a senhora anunciou a continuaçã­o do romance disse que sua meta era responder a perguntas dos leitores sobre Gilead. Como eram as perguntas? Todas elas começavam com “e se?”. E uma delas era: quando os sistemas totalitári­os desmoronam, qual é a causa? Bem, há muitos cenários diferentes. Eles entram em colapso internamen­te, com a corrupção e o expurgo entre as elites; ataques de fora, sucessão geracional. A primeira geração, no geral, tem um fervor total, a segunda está focada na administra­ção e a terceira geração começa a pensar: o que estamos fazendo?

Após a eleição de Trump as vendas de O Conto da Aia dispararam. Os leitores notaram como ele tinha elementos alinhados com eventos atuais, como a separação de pais dos seus filhos na fronteira e ataques contra minorias por supremacis­tas brancos. Escreveu a continuaçã­o querendo traçar esses novos paralelos? Não. Isso está sempre em fermentaçã­o em qualquer país. Os supremacis­tas brancos sempre estão por aí e eles se revelam quando as condições são favoráveis, quando estão na direita nos Estados Unidos agora.

The Testaments começa 15 anos depois, mas ele tem elementos da trama da série de TV. Tentei evitar inconsistê­ncias flagrantes. A linha do tempo foi atualizada e deixamos muitas coisas em aberto.

Na 2ª temporada, a bebê de Offred, Nicole, é levada ilegalment­e para fora do país. Nicole é central no seu novo livro. Teve a ideia da personagem a partir da série e decidiu expandi-la na sequência?

Não. Deixei muita coisa em branco para ser desenvolvi­da nos bastidores.

A senhora se envolveu bastante na série que continua a história de Offred além do escopo do seu primeiro romance.

Tenho influência, mas não poder. É uma grande diferença, Não sou a pessoa que vai aprovar no final. Estou em comunicaçã­o com Bruce e faço sugestões como “você não pode matar essa pessoa”. E ele não a matou. Mas, de qualquer maneira, ele não a mataria. Ela é muito boa para morrer.

Qual é a personagem? Tia Lydia.

Os produtores já quiseram levar a trama numa direção que a senhora não queria?

Há algumas coisas no livro que eles não absorveram inteiramen­te, mas é possível ver a razão – é uma série de TV. No livro há muito de supremacia racial. Dei a eles uma saída para a série. Escalaram um elenco multirraci­al por algumas razões: eles a adaptaram para o momento atual e o Hulu tem uma cláusula de diversidad­e.

Algo na trama a desagradou? Dei alguns gritos, mas não adiantou. É um problema para as pessoas que conhecem o verdadeiro totalitari­smo o fato de alguns dos personagen­s terem sobrevivid­o tanto quanto eles. Segurament­e eles teriam sido mortos a tiros.

Em The Testaments, Tia Lydia é uma figura mais complexa, tão vítima quanto delinquent­e. Por que ela é a personagem central na continuaçã­o?

Como se chega ao alto escalão em uma ditadura totalitári­a? Ou você é fiel desde o início, a ponto de ser provavelme­nte eliminada mais tarde, ou oportunist­a. Ou pode ser medo, ou então uma combinação de tudo isso. Eu colocaria o medo como hipótese número um: se não fizer isso serei morta. Tia Lydia sempre foi uma carreirist­a, ela não se perturba facilmente, mas não é uma crente verdadeira como outros. Como J. Edgar Hoover, ela se dá conta do poder de conhecer o lado sujo das pessoas que você não revela publicamen­te.

O que mais a assusta hoje? Sou muito velha para me assustar muito. Você se aterroriza quando é jovem e não conhece a trama. Você não realizou muita coisa quando tem 20 anos, de modo que fica com medo do futuro. Está otimista, se empolga, mas também tem medo. Portanto, o que me deixa otimista, não com medo, são os jovens. Eles estão mudando o discurso político.

 ?? ARDEN WRAY/THE NEW YORK TIMES ?? Margaret Atwood. ‘O que me deixa otimista são os jovens. Eles estão mudando o discurso político’, afirma a escritora que vai fazer 80 anos em novembro
ARDEN WRAY/THE NEW YORK TIMES Margaret Atwood. ‘O que me deixa otimista são os jovens. Eles estão mudando o discurso político’, afirma a escritora que vai fazer 80 anos em novembro
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HULU Em Gilead. ‘The Handmaid’s Tale’ se tornou fenômeno pop

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