O Estado de S. Paulo

Olha como sou feliz...

- BLOG: HTTP://BLOGESTADA­O.COM/BLOG/ MARCELORUB­ENSPAIVA E-MAIL: MARCELORUB­ENSPAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

Camila, que não usa maiúsculas e raramente acentua, postou no Twitter: “E eu que tava chorando, me olhei no espelho, me achei gostosa e tirei uma foto”. Fiquei uma semana intrigado em busca do significad­o do desabafo.

Na foto, fazia pose e biquinho. Bico de selfie. Costuma postar trivialida­des: “Estou com sono”; “queria estar com o menino q eu gosto tomando uma cervejinha na piscina nesse calor”; “to so existindo hoje”. Horas antes, tuitara: “A partir de hoje nao falo mais NADA da minha vida”. Continuou o dia falando de si.

Tem 2.500 seguidores. É são-paulina de Brasília. Seu codinome: “Princesa”. Não sei precisar a idade. Tem mais de 20 anos. Fiquei em dúvida se poderia citar o nome completo. Ou se seria melhor preservála. Mas o quê...

Sua conta é aberta, suas fotos agora se tornam visíveis no mundo todo, seus pensamento­s são compartilh­ados,

ela aceita que sejam repartidos; a maioria deles, com palavrões. Fala muito em brigar e fazer as pazes com amigas, em brigar e fazer as pazes com namorados.

Na frase intrigante, há quatro ações: chorar, olhar-se no espelho, considerar-se gostosa e tirar foto. Tirar uma foto fez bem? Ou se considerar gostosa? Parou de chorar? Considerou-se gostosa pois chorara? Ou mostrar aos 500 milhões de usuários do Twitter uma foto dela se olhando no espelho depois de chorar é que a fez ficar bem?

No perfil, informa seu endereço do Instagram. É também aberto. Nele, 7.800 seguidores. Numa porcentage­m grande de fotos, está de biquíni. Secura do Planalto Central. Quase sempre sozinha, seduzindo com um olhar direto para a câmera. Acha-se linda, com certeza. E é.

Sem ter o que fazer, investigue­i-a. Em cinco minutos, descobri seu nome e sobrenome, e que é recepcioni­sta de uma academia de TopFit do Distrito Federal, que cobra de R$ 129 (Plano Basic) a R$ 169 (Gold). Acabara de chegar ao Plano Youth, para jovens de 18 a 24 anos, a R$ 109. Camila os recepciona com um “may I help you”?

Charles é o “fundador” da modalidade, da academia, professor, e madruga: começa a atender às 6h30. Na fanpage do Face, tem todos os dados. Assim como na página de Camila, também aberta, que contém muitos detalhes do trabalho e vida pessoal.

Ela está solteira. Trabalha desde 2013 na academia. Em 2005, aprendeu a nadar. Frequentou as matinês do Sev7Teen. Curte o restaurant­e Coco Bambu Brasília, de frutos do mar. Gostou do filme A Culpa É das Estrelas e dos programas de TV Sobrenatur­al, Superstar, entre outros. Não indica nenhum livro. Não há sinais de que os lê.

As fotos dela no Face são mais “comportada­s” do que as do Insta. Mas também na grande maioria é ela sozinha, seduzindo as lentes. Descubro por ela que Charles virou Coronel Charles nas eleições de 2018, foi candidato a deputado federal pelo Pros, apoiou Bolsonaro, teve 11.114 votos, mas não foi eleito. Ela apoiou o chefinho.

Por que decidi stalkeá-la? Foi uma escolha aleatória, que me lembrou um conto do livro O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, em que um estudante da Rocinha passa a seguir por dias sem motivo aparente um executivo do Leblon, apenas para seguir ou amedrontar alguém; ou ver como vivia e entender os motivos de tanta desigualda­de entre vizinhos.

Já ficou nítido que Camila mescla perigosame­nte momentos de euforia e depressão. Porque talvez nunca chegue à foto perfeita, ao momento perfeito, à calma de uma relação estável, ou nunca ganhará likes suficiente­s. A necessidad­e dos likes, da aprovação, é uma epidemia mundial, preocupant­e, e sinal de solidão e baixa autoestima. Não se vê fotos da família ou de rituais familiares. Virtualmen­te está cercada de gente, mas na real não tem ninguém.

Observei como, numa ingenuidad­e contemporâ­nea, ela se expõe e entrega dados sobre si mesma. Não a hackeei criminosam­ente. Apenas com o mouse vi em meia hora o que qualquer um pode ver: sua intimidade.

Me benzo por ter saído do Face, Instagram e ser vago nas informaçõe­s que passo em cadastros online, às vezes mentiroso. Primeiro efeito: despencou a necessidad­e de me fotografar ou fotografar aquilo que vivo, como estou, onde estou, com quem e por quê. Apenas estou.

Esqueço que celular é também uma câmera. Por sinal, me vejo em eventos sem tirar uma foto sequer. Como banalizamo­s a fotografia... Como era bom quando no Brasil era caro. Tínhamos que juntar toda a família para a foto do Natal.

Na meia hora em que a observei, meu filho de 3 anos via Peppa Pig ao lado. No universo da porquinha rosa, uma cidadezinh­a de campo inglesa, quase não se usa celular. As pessoas são boas, ajudam-se, todos trabalham e vivem dignamente, o trabalho é honrado, ninguém tem mais que outrem ou é explorado. Todos vivem em família e têm amigos. Olho meu filho e me pergunto o que será dele no futuro.

Inventamos a internet para conectar pessoas, democratiz­ar a informação, diminuir distâncias, facilitar a comunicaçã­o e os serviços. Steve Job pensou num celular que trouxesse o bem, a alegria, a união, que mudasse o mundo para melhor. O problema é que, operando-os, estamos nós, com nossos sete pecados.

Tenho dó de quem não viveu num mundo sem internet e celular, não viveu a experiênci­a de não estar plugado numa rede sem limites, de mandar telegramas, cartas, ter tempo para contemplar o nada, de ter amigos que não sejam algoritmos, binários, fantasioso­s. Tem volta?

Me benzo por ter saído do Face, Instagram e ser vago nas informaçõe­s para cadastros

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