O Estado de S. Paulo

O que nos ensina o drama argentino

- SERGIO FAUSTO

Os argentinos já viram este filme antes: o amargo regresso a um colapso econômico. Por que esse enredo se repete há pelo menos quatro décadas, abortando ciclos de cresciment­o relativame­nte curtos e reiterando a trajetória de declínio econômico daquela que há cem anos era, de longe, a nação mais rica e com a melhor educação pública de toda a América Latina? A resposta está num padrão de (des)governança que se estabelece­u no país vizinho ao longo da segunda metade do século 20.

Digo isso com desgosto. E com preocupaçã­o, porque vejo aqui sinais crescentes da enfermidad­e política que ali se desenvolve­u. A doença consiste na politizaçã­o das instituiçõ­es do Estado e na polarizaçã­o da sociedade em campos opostos e inconciliá­veis. Na Argentina, com altos e baixos, ela evoluiu ininterrup­tamente a partir do primeiro governo de Juan Domingo Perón, deposto e exilado por um golpe militar em 1955.

É clichê tratar Getúlio Vargas e Perón como gêmeos siameses. Apesar de semelhança­s, eles foram diferentes. Ambos lideraram e simbolizar­am a incorporaç­ão de massas de trabalhado­res urbanos na arena política e na esfera da cidadania regulada por um Estado tutelar. Mas Perón e o peronismo se estenderam muito além de Vargas e do varguismo. Não apenas no sentido óbvio de que o presidente argentino sobreviveu a seu homólogo brasileiro em mais de 20 anos, mas, principalm­ente, em termos da intensidad­e e duração dos efeitos políticos que provocaram.

O populismo peronista foi muito mais longe na mobilizaçã­o política e sindical das massas a partir do Estado, na redistribu­ição da renda e na intervençã­o no campo da cultura (seja para exemplarme­nte franquear aos trabalhado­res acesso a bens simbólicos, como o aristocrát­ico Teatro Colón, seja para purgar as universida­des públicas de professore­s não alinhados). Perón pôs o Estado a serviço da consolidaç­ão e tutela do movimento que o sustentari­a como líder máximo. Foi deposto a balas e tiros de canhão e proscrito da vida política de seu país por quase 20 anos.

Em Vargas, o líder populista convivia com o político tradiciona­l e o estadista republican­o de inspiração positivist­a, preocupado com a administra­ção “científica” e modernizad­ora do Estado. O varguismo não teve vida longa depois do suicídio de seu líder. O peronismo, nas suas mais diferentes versões, vive até hoje.

O primeiro período de Perón no poder e o golpe militar de 1955 produziram um racha profundo e duradouro na política, na sociedade e na cultura da Argentina. O embate entre peronistas e antiperoni­stas se fez à custa da independên­cia e impessoali­dade das instituiçõ­es do Estado. A politizaçã­o penetrou a burocracia civil, a magistratu­ra, as Forças Armadas, a estrutura sindical corporativ­a, o empresaria­do e mesmo a Igreja Católica.

Corroeram-se assim as instâncias de mediação e os conflitos políticos ganharam caracterís­ticas destrutiva­s. Os antiperoni­stas baniram Perón da vida política. Já os peronistas, mesmo alijados do poder, agiram para tornar inviáveis governos civis não peronistas, mesmo depois que Perón e o Partido Justiciali­sta, criado por ele, recuperara­m a legalidade, ao início dos anos 70.

Adensou-se uma cultura política do confronto, com altos níveis de violência, não apenas entre os campos opostos, mas também dentro do próprio peronismo, composto por diferentes grupos políticos e sindicais que não raro disputaram à bala a preferênci­a do líder e a hegemonia do movimento. Tal espiral de violência culminou na mais brutal de todas as ditaduras latinoamer­icanas, entre 1976 e 1983.

Apesar de certa sincronia nos ciclos políticos, a história brasileira da segunda metade do século 20 contrasta com a do país vizinho em pontos fundamenta­is: violência política incomparav­elmente menor, mesmo durante o regime militar (19641985); maior neutralida­de e independên­cia das instituiçõ­es do Estado (do Banco Central aos tribunais) em relação aos conflitos políticos e ao governo de turno; superior grau de profission­alização da burocracia civil e militar; fronteiras mais porosas entre grupos políticos facilitand­o o diálogo e a composição entre eles.

Um dos feitos da redemocrat­ização brasileira foi ter ampliado a liberdade de expressão, participaç­ão e organizaçã­o, numa sociedade muito desigual e violenta no seu cotidiano, sem ter produzido antagonism­os políticos corrosivos da convivênci­a democrátic­a. Ao mesmo tempo, fortaleceu os mecanismos públicos de controle e fiscalizaç­ão do poder político e econômico e das relações entre ambos. Comparativ­amente, na Argentina a redemocrat­ização significou em boa medida a reiteração de um padrão destrutivo de competição política e de utilização das instituiçõ­es do Estado para castigar adversário­s e premiar aliados. O resultado trágico dessa reiteração é a perda de confiança dos argentinos em seu próprio país. Sua expressão mais concreta é a preferênci­a pelo dólar, agravada ao menor sinal de crise.

Temo que em algum momento a partir de 2014 a dinâmica da política brasileira tenha adquirido caracterís­ticas típicas do país vizinho. Bolsonaro é produto desse fenômeno e o acentua deliberada­mente. Ameaça leválo ao paroxismo ao sistematic­amente insultar adversário­s, intimidar agentes públicos e afrontar instituiçõ­es do Estado.

Estamos descendo um plano inclinado. Reformas que combinem eficiência econômica e equidade social são indispensá­veis para mudar a trajetória do País. Há avanços nessa direção, mais por obra do Congresso e da sociedade que do governo.

É urgente conter e depois mudar a dinâmica política que levou Bolsonaro ao poder e que por ele é radicaliza­da. Que o drama histórico da Argentina nos sirva de alerta, antes que a destruição das bases da convivênci­a democrátic­a nos roube o futuro também. Por último, mas não menos importante, que a Argentina ainda possa recuperálo, vença quem vencer as eleições de outubro/novembro.

Urge conter e mudar a dinâmica política que levou Bolsonaro ao poder e ele radicaliza

SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

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