O Estado de S. Paulo

O ROMANCE DE DÖBLIN VISTO POR BENJAMIN

- Walter Benjamin

Acontece com o sal épico o mesmo que com o sal químico: ele torna mais duráveis as coisas às quais se mescla. E a durabilida­de é um critério da literatura épica, num sentido inteiramen­te distinto da durabilida­de que caracteriz­a os demais gêneros literários. Mas não se trata de uma duração no tempo, e sim no leitor. O verdadeiro leitor lê uma obra épica para “conservar” certas coisas. E, sem dúvida, ele conserva duas coisas desse livro: o episódio do braço e o de Mietze. Por que Franz Biberkopf é jogado debaixo de um carro, perdendo um braço? E por que lhe tiram a amiga e a matam? A resposta está na segunda página do livro. “Porque ele exige da vida mais que um sanduíche”. Nesse caso, não exige refeições abundantes, dinheiro ou mulheres, mas algo de pior. Seu “grande focinho" fareja uma coisa que não tem forma. Ele está consumido por uma fome – a do destino. Nada mais. Esse homem precisa pintar o diabo na parede, “al fresco”, sempre de novo. Não admira, portanto, que sempre de novo o diabo apareça, para buscá-lo. Como essa fome de destino é saciada, saciada por toda a vida, cedendo lugar à satisfação com o sanduíche, e como o marginal se transforma num sábio – esse é o itinerário de sua vida. No fim, Franz Biberkopf se converte num homem sem destino, “esperto”, como dizem os berlinense­s. Döblin descreveu esse “amadurecim­ento” de Franz com uma arte inesquecív­el.

Assim como durante o Barmiswoh os judeus divulgam à criança o seu segundo nome, até então secreto, Döblin dá a Biberkopf um segundo prenome. Ele se chama, agora, Franz Karl. Ao mesmo tempo, acontece algo de muito estranho com esse Franz Karl, que se tornou ajudante de porteiro numa fábrica. Não podemos jurar que Döblin tivesse percebido isso, embora conhecesse seu herói tão intimament­e. O que acontece é o seguinte: Franz Biberkopf deixa de ser exemplar e ascende, em vida, ao céu dos personagen­s romanescos. A esperança e a memória o consolarão, doravante, nesse céu, seu cubículo de porteiro, porque é mais “esperto” que os outros. Mas nós não o visitaremo­s nesse cubículo. Pois essa é a lei da forma romanesca: no momento em que o herói consegue ajudarse, sua existência não pode mais ajudar-nos. E se é certo que essa verdade vem à luz, em sua forma mais grandiosa e mais implacável, na Education Sentimenta­le, então a história de Franz Biberkopf é a Education Sentimenta­le dos marginais. O estágio mais extremo, mais vertiginos­o, mais definitivo, mais avançado, do velho “romance de formação” do período burguês.

TRECHO DO ENSAIO SOBRE ‘BERLIM ALEXANDERP­LATZ’, DE AUTORIA DE WALTER BENJAMIN, INCLUÍDO NO LIVRO ‘WALTER BENJAMIN, OBRAS ESCOLHIDAS’ , PUBLICADO PELA EDITORA BRASILIENS­E

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DEUTSCHES RUNDFUNKAR­CHIV Autor. Retrato da miséria moral em Weimar

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