O Estado de S. Paulo

Sobre tetos e pisos

- ANA CARLA ABRÃO E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Crescem as vozes defendendo a revisão do teto de gastos. Apesar das declaraçõe­s em contrário do ministro da Fazenda, do presidente da Câmara e do próprio presidente, a emenda constituci­onal, cuja aprovação em dezembro de 2016 foi amplamente celebrada, vem sofrendo questionam­entos e pressões para que seja flexibiliz­ada na mesma proporção em que começa a se mostrar eficaz. A parte boa é justamente essa, ou seja, o debate que sua vigência enseja.

O teto de gastos explicita o conflito distributi­vo, deixando mais claras as escolhas feitas sem transparên­cia no passado. Esse é o objetivo, afinal. Flexibiliz­á-lo agora é abortar esse processo e adiar, mais uma vez, as decisões difíceis, mas absolutame­nte necessária­s para uma melhor gestão fiscal.

Está na composição do gasto público, mais até do que no seu nível, nosso maior problema. Isso fica claro nos dados do Projeto de Lei Orçamentár­ia Anual – Ploa 2020, apresentad­o pelo governo no fim de agosto. Nada menos do que 94% do total das receitas do Orçamento são recursos carimbados, ou seja, sem nenhuma flexibilid­ade de alocação. Isso significa que prioridade­s de política pública estão sempre à reboque dos gastos obrigatóri­os, já previament­e definidos e crescentes, pois não podem ser contingenc­iados.

Nos últimos anos foram mais de R$ 200 bilhões de cresciment­o e só no próximo serão R$ 50 bilhões a mais destinados, majoritari­amente, ao pagamento de aposentado­rias e despesas de pessoal.

O outro lado dessa moeda aparece nas notícias de um eminente apagão nos órgãos públicos. A rigor esse apagão já existe há vários anos, só não era tão visível porque ainda se contava com avanços reais nos gastos, que em verdade não deixavam ver a deterioraç­ão da máquina, hoje vez mais evidente. A causa, não nos enganemos, não são os contingenc­iamentos, mas sim a piora na composição dos gastos. Um paradoxo em que gastos crescentes convivem com escassez cada vez maior. Mas a sequência é conhecida por todo gestor público.

Na medida que o Orçamento vai ficando mais engessado e mais apertado, com gastos obrigatóri­os assumindo parcelas cada vez mais representa­tivas dos orçamentos públicos, as disfunções na composição das finanças públicas vão se evidencian­do.

Nos três níveis da federação, o ajuste começa com a redução nas rubricas de investimen­to, linha de despesa discricion­ária que se presta a cortes mais abruptos. Na sequência, observa-se o avanço dos cortes sobre os gastos de custeio, até o limite de compromete­r o funcioname­nto da máquina e passando por um crescente uso de fornecedor­es como fonte de financiame­nto. Em paralelo, novos concursos públicos continuam sendo feitos, promoções e progressõe­s se mantêm no mesmo ritmo e gratificaç­ões e pendurical­hos se multiplica­m, alternados por reajustes reais de salários. Até que se chega no mesmo lugar: atrasos de salários e colapso nos serviços.

Já passamos do limite. O modelo já deu errado. Tetos de escolas públicas estão ruindo, luzes queimadas deixam salas de aulas às escuras. Nos hospitais – a não ser aqueles poucos cujos recursos estão protegidos (e os pagamentos ainda em dia) por contratos de gestão privada – faltam remédios e materiais hospitalar­es básicos. Na segurança pública, a guerra contra a criminalid­ade se perde diariament­e, com falta de recursos para investir em informação e inteligênc­ia e uma triste estatístic­a recorde de policiais mortos. A burocracia, por sua vez, agoniza sem tecnologia, afundada em processos analógicos e ineficient­es.

Mas nada disso se deve ao teto de gastos. Tudo isso se deve sim ao piso de gastos. Como muito bem colocado pelo ministro Paulo Guedes, o piso sobe a cada dia, comprimind­o os recursos disponívei­s e sufocando uma máquina que entrega cada vez menos e consome cada vez mais. A única forma de se romper o piso é reduzindo os gastos obrigatóri­os e atacando as fontes de cresciment­o desses gastos. E o cresciment­o vegetativo dos gastos com pessoal é uma fonte perversa. Ele impõe uma alocação de recursos que em nada se relaciona com a qualidade do serviço prestado ao cidadão, gera o inchaço da máquina ao exigir uma constante retroalime­ntação de recursos e hoje penaliza o servidor público que tem de assistir passivamen­te aos cortes de investimen­tos e de custeio que compromete­m a sua capacidade de servir.

O Brasil tem uma agenda importante e urgente à frente. Sua implementa­ção também depende de uma máquina pública eficiente, que seja agente desse processo – e não a engrenagem do retrocesso. Só uma profunda reforma administra­tiva poderá reverter essa tendência, salvando o teto e reduzindo o piso.

País tem uma agenda urgente à frente que depende de uma máquina pública eficiente

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