O Estado de S. Paulo

‘O BRASIL PRECISA GANHAR A CONFIANÇA DA CHINA’

- / GABRIEL MANZANO

Depois de tudo o que disse e fez nos últimos oito meses, nas relações com Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro precisa ter “uma narrativa adequada” para as conversas que terá com os líderes chineses em Pequim na visita que fará à China em outubro. Quem faz a advertênci­a é Marcus Vinicius de Freitas, ligado à Faap e visiting professor na Universida­de de Relações Exteriores de Pequim, uma espécie de “berço de formação” dos diplomatas daquele país.

“O Brasil não pode perder a oportunida­de de criar a base para uma relação com ganhos exponencia­is”, adverte o professor. Em entrevista telefônica à coluna, da capital chinesa, ele pondera que não se pode correr o risco de provocar uma retração nas expectativ­as deles, “quando temos no horizonte grandes temas globais como inteligênc­ia artificial, propriedad­e intelectua­l e 5G”. É preciso “ganhar a confiança para aproveitar as oportunida­des”.

O que esperar da visita de Bolsonaro a Pequim?

Que ela ajude a incentivar mais investimen­tos no Brasil e crie uma relação bilateral produtiva. Digo isso porque no início do governo o que se viu foi uma aproximaçã­o intensa com Donald Trump e se espalhou uma ideia de que a China estava comprando “o Brasil” e não “no Brasil”. Pareceu, aqui, que se queria criar um entrave na relação. Ora, os chineses não querem ter “dois Trumps no mesmo continente”. Isso retraiu a perspectiv­a de investimen­tos de longo prazo.

Qual o tamanho real desse estrago?

Tudo depende do alinhament­o que se dará daqui por diante. O Brasil tem de deixar claro para eles qual é sua relação com os EUA e quais os seus interesses na China. Se tentar boicotá-la, por exemplo, na questão da inteligênc­ia comercial e do 5G, vai desestimul­ar investimen­tos e compras do seu grande cliente.

Mas eles se interessam pelos produtos brasileiro­s, não? Sim, mas há uma falsa percepção, no Brasil, de que somos os únicos fornecedor­es de certos produtos para os chineses. Não é verdade. O minério pode ser obtido na Austrália, a soja nos próprios EUA, por exemplo. E temos de tomar cuidado porque não agregamos valor às nossas commoditie­s. Corremos o risco de ir ficando para trás nos avanços globais.

O que o sr. quer dizer com “ganhos exponencia­is” que o Brasil poderia ter?

Basta olhar o futuro. A renda per capita chinesa hoje é de 10 mil dólares. O projeto deles é chegar a 25 mil ou 30 mil até 2050. O impacto disso é enorme. Como fornecedor, o Brasil pode encontrar aqui um poço infindável para o que vier a produzir.

Isso pressupõe uma estratégia de longo prazo.

Sim, e tem de levar em conta que a China vive uma transição de fábrica global para mercado consumidor global. Uma oportunida­de que surge aí, por exemplo, é que o Brasil pode ser um “hub” a partir do qual a China produza para exportar para outros mercados, ao mesmo tempo em que se transforma num grande mercado consumidor para eles.

Quando o sr. fala em “narrativa adequada” para os encontros entre Bolsonaro e os governante­s chineses, o que está sugerindo?

Uma atitude consequent­e, de olho no interesse do nosso país. Dou um pequeno exemplo: quando o general Hamilton Mourão esteve aqui em Pequim, em recente viagem, perguntou basicament­e o que a China tem a oferecer. Acho isso equivocado. Eles é que têm o dinheiro e o mercado consumidor. Ou seja, nós é que devemos interessá-los no que temos a oferecer”.

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IARA MORSELLI/ESTADÃO

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