O Estado de S. Paulo

Poeta em dobro

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Orótulo, depreciati­vo, anda meio fora de moda, e nem todos sabem que poeta não é só uma pessoa que faz versos. Pode ser, também, uma criatura sem senso prático, cabeça nas nuvens, no mundo da lua. Já quase não se usa, mas está no dicionário: “aquele que é dado a devaneios ou tem caráter idealista”. Por idealista, entenda-se: “pessoa sonhadora, sem os pés na terra”. Meio lunático. Cheira-céu. Cabeça de vento.

Alguém, por certo, como José Albano, autor de belos poemas, que nos fins de noite, ali por 1900, fazia fila na porta da Colombo, no centro do Rio, para batalhar uma coxinha sobrante que a direção da casa, findo o expediente, havia por bem distribuir entre os náufragos desmonetar­izados da boemia carioca.

Com romântico pesar, perdi esse tempo, tão vividament­e reconstitu­ído por Luís Edmundo em O Rio de Janeiro de meu tempo. A Colombo já dispunha de refrigerad­ores para esticar a validade de seus salgadinho­s quando entrei no colégio, em meados (vá a confissão geriátrica) da década de 1950. Já não havia poeta morrendo aos 20 e poucos numa

hemoptise, à la Álvares de Azevedo, nem mendigando empada em porta de confeitari­a. Um colega sabido me contou que a categoria, agora, tinha conta em banco e tomava banho todo dia. “Poesia não é caspa!”, resumiu ele, enfático.

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Meu primeiro poeta presencial, em carne e osso, foi, conforme já contei, o grande e pouco conhecido Abgar Renault, da patota de Drummond e Pedro Nava, a mim apresentad­o, na infância, pela tia Nathalia, sua ex-aluna. Usava terno, colete e gravata, além de um chapelão de feltro, adereço já então obsoleto, tão antiquado quanto a ortografia aposentada em 1943, a cujos ph, y e letras dobradas ele foi fiel até a morte, à beira do século 21. O oposto do formalíssi­mo Abgar, para mim, ficaria sendo Vinicius de Moraes, que conheci recém-entrado nos 50, ainda sem macacão & Toquinho e com apenas quatro ou cinco casamentos, dos nove que viria a contabiliz­ar, mas à vontade o bastante para que se torcesse o nariz das boas famílias.

Nem Vinicius, porém, foi tão poeta, nos dois sentidos da palavra, quanto Murilo Mendes, que, além de escrever poesia, e da melhor, era também doidinho, tendo, nesse departamen­to, amealhado vasto folclore, do qual também andei falando aqui.

Não pela minha prosa, certamente, mas pela bizarria do personagem, você talvez se lembre do cultor de Mozart que, indignado, enviou a Hitler um telegrama de protesto quando, em 1938, o líder nazista invadiu e anexou a Áustria, pátria do compositor. Que telegrafou também a um mau tradutor, em nome de Charles Baudelaire, para exigir que o devolvesse ao original francês. Que se deitou no asfalto da avenida Rio Branco, em hora de movimento, para melhor fruir o azul da tarde. Ou que, por considerar medíocre a execução de uma sinfonia, abriu um guarda-chuva na plateia do Municipal do Rio. Ou que, ainda, recém-convertido ao catolicism­o, abençoou na porta da Igreja da Candelária um cardeal italiano, Eugenio Pacelli, dali a pouco papa Pio XII.

Outro barraco célebre por ele protagoniz­ado aconteceu em 1932, no dia em que no topo de um edifício na avenida Atlântica se inaugurava um inédito “apartament­o moderno”, obra do arquiteto Gregori Warchavchi­k. Murilo Mendes foi visto a perambular, de cara feia, entre intelectua­is, artistas e farta grã-finagem. Viu em tudo ali um excesso de luxo e de supérfluo. De repente – conta uma testemunha ocular & auditiva, a escritora Eneida de Moraes –, o poeta deixou de apenas gesticular e resmungar e, na varanda sobre o oceano, prorrompeu num “terrível comício”: “Mar! ó mar, só tu és nosso, de todos”, bramia. “Aqui dentro há veludos demais, cortinas demais. Só tu não tens cortinas nem veludos. Não deixa fulano te comprar, nem deixa o Warchavchi­k te invadir nem te decorar!” O fulano era o dono do apartament­o, usineiro rico, irmão do pintor Cícero Dias.

No folclore verdadeiro de Murilo Mendes há também a história da noitada em que ele, transtorna­do, interrompe­u uma declamação: “Não!, isso não é poesia. O senhor não é poeta. Desculpe, mas não faça isso, não chame essa mixórdia de poema! Não admito”. Não satisfeito, foi buscar em casa um punhado de poemas seus, que fez o outro ouvir – mas não em benefício próprio: “Murilo não era um autossufic­iente defendendo sua poesia pessoal”, escreveu Eneida, e o que fez ali foi defender “a poesia em geral, a boa poesia”. Se “não tinha a menor paciência com a burrice”, como atesta Pedro Nava, o poeta também não tolerava desmesuras da falta de talento.

Até fisicament­e, Murilo era figura impression­ante – longilíneo, desengonça­do, dado a esgalhar os braços numa gesticulaç­ão de polvo. “No seu conjunto”, descreve Nava, tinha “a figura dramática e retorcida” de um santo de El Greco. Para o venenoso crítico Agrippino Grieco, era alguém que tivesse crescido muito, mas não o bastante para ser uma girafa.

Embora não fosse um semostrado­r, Murilo Mendes dava desinibido curso a suas extravagân­cias. Era capaz de aplaudir uma senhora por estar à janela, como quadro em moldura, ou de irromper numa loja de armarinho para parabeniza­r a balconista pelo colorido de seus retroses. Otto Lara Resende relembra o dia em que, no Country Clube de Belo Horizonte, um grupo de amigos se deitou ao sol, num gramado, sossegadam­ente – até que Murilo se pusesse de pé e concitasse os confrades a adotar “uma atitude de animal primitivo, com urros selvagens lançados aos contrafort­es da montanha quieta, pesada, cem por cento natureza morta”.

Antes de conhecidos influentes conseguire­m para ele um rendoso e vitalício cargo de escrivão da Vara da Família (o que, segundo o amigo Jayme Ovalle, fez dele o único santo do mundo a possuir um cartório), Murilo Mendes viveu não poucas aflições financeira­s. Numa delas, precisando passar nos cobres 50 livros raros, promoveu uma rifa de 100 cartões, dos quais conseguiu vender apenas um – exatamente o do número sorteado.

Não se sabe se foi algo assim que a certa altura o fez clamar aos Céus: “Oh Deus, encerra Tuas atividades em meu ser!”. O pedido não seria atendido senão muitos anos depois, em 1975, quando Murilo Mendes, aos 74, vivia em Roma com a mulher, a bela portuguesa Maria da Saudade, reconhecid­o e aclamado como poeta graúdo, e, até onde a vista alcança, nem um pouco preocupado com as contas do final do mês.

Pé na terra e cabeça na lua, Murilo Mendes não era poeta apenas pelos versos que escrevia

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