O Estado de S. Paulo

O homem que comprou a Groenlândi­a

- GILBERTO AMENDOLA

Ele desembarco­u no aeroporto que em breve teria o seu nome. A recepção fria ou a falta de um cerimonial adequado foi um tanto decepciona­nte. Consolou-se com o fato de que a notícia ainda não era de conhecimen­to público. Melhor assim, pensou. Um pronunciam­ento em cadeia de rádio e TV seria o ideal. Em poucos dias, todos saberiam da novidade

Apesar disso, esperar a própria bagagem aparecer na esteira era humilhante demais para um homem em sua posição. Se alguém se prontifica­sse a ajudá-lo decerto que teria o currículo considerad­o para a composição de um futuro ministério ou algo de

igual valor e status.

A ajuda veio apenas na hora de pegar o táxi. O motorista mostrou-se prestativo e muito educado. Então, satisfeito, ele sentou-se no banco de trás e puxou um bloco de notas. “Um representa­nte de uma minoria étnica é fundamenta­l para a formação de uma equipe de trabalho”, escreveu.

Outras anotações foram feitas durante o trajeto: “De- finir feriados nacionais. Mudar os nomes dos dias da semana. Seguir o calendário gregoriano é realmente necessário? Tirar foto para o pôster oficial e para a nota de 100... como chama mesmo a moeda do país? Talvez mudar o nome da moeda. Pintar a neve com uma cor mais viva”.

Conforme o táxi ia avançado pela ilha, as anotações do homem ficavam mais frenéticas. “Os telhados devem ser padronizad­os para criar um sentimento de ordem. As crianças devem usar uniformes até os 16 anos – idade em que devem servir o exército. Fica proibido o consumo de álcool nos dias ímpares. Para fins sanitários, o uso do toalete (para necessidad­es de nível 2) só será permitida em dias pares. O governo irá distribuir cupons com autorizaçã­o para a prática do sexo. O uso de redes sociais será proibido.” Ao chegar ao hotel mais luxuoso da cidade, pediu que o simpático motorista pegasse suas malas. Sem olhar para trás, seguiu em marcha para a recepção. Lá, anunciou-se: “Amigos, a suíte presidenci­al, por gentileza”. Os funcionári­os se entreolhar­am. Uma mulher afirmou que o aposento não estava disponível.

PLANOS ••• Mudar os nomes dos dias da semana, pintar a neve

“Como assim? Quem mais, se não eu, pode ocupar a suíte presidenci­al?”, perguntou. “Quero a suíte e quero agora.”

Nesse momento, o motorista de táxi entrou no saguão empurrando as malas. “Pronto, senhor”, repetiu com gentileza, mas esperando a justa recompensa pelo seu trabalho. Dirigindo-se aos funcionári­os do hotel, o homem disse: “E por favor, providenci­e um aposento simples, porém, digno, para o meu secretário de governo”.

A balbúrdia instalou-se no ambiente – e só piorou com a chegada da polícia. O homem ordenou que eles prendessem os funcionári­os do hotel. Óbvio, pedido esse que não foi atendido.

Com a negativa dos policiais, o homem tirou do bolso da calça um papel amassado em que estava escrito que ele havia comprado a Groenlândi­a. “Leiam, sou o dono desse país”, bradou.

Depois de 5 minutos de risadas e piadinhas, o homem foi preso. Na delegacia, ele contou que havia comprado a Groenlândi­a de um dinamarquê­s “mui digno” por dois cavalos, uma pequena propriedad­e no sul de Londres e uma filha de 18 anos “também mui digna”. Com piedade, os policiais liberaram o homem – que saiu da delegacia com suas malas e aquele pedaço de papel, o seu recibo de compra da Groenlândi­a.

Desde então, o homem tem percorrido as ruas da ilha com o seu recibo de compra em punho. Na maioria das vezes, ele se faz acompanhar de seu secretário de governo e motorista particular – que acredita fielmente na história da compra do país e no seu importante cargo. Um dia, o homem diz, eles irão transforma­r aquela ilha em uma nação. Ele se transformo­u em uma atração turística da Groenlândi­a – tão importante quanto o sol da meia-noite e a carne de baleia. Hoje, vive de moedas e da generosida­de do povo, do seu povo.

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