O Estado de S. Paulo

É razoável ter limites

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Jair Bolsonaro cedeu à pressão de corporaçõe­s e desfigurou o projeto de lei sobre abuso de autoridade com 19 vetos.

Os 19 vetos apostos pelo presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei sobre abuso de autoridade são a demonstraç­ão de como é difícil coibir privilégio­s e excessos praticados e hauridos por determinad­as categorias profission­ais. Depois de muitos anos sem uma legislação consolidad­a sobre o exercício abusivo da função pública, o Congresso aprovou no mês passado o Projeto de Lei (PL) 7.596/17, um texto bastante equilibrad­o que, sem compromete­r a autonomia do agente público, protege o cidadão de excessos dolosament­e praticados. Bolsonaro preferiu, no entanto, ceder à pressão de algumas corporaçõe­s e desfigurou o projeto de lei com abundantes vetos. Cabe agora ao Legislativ­o derrubá-los. O abuso de autoridade não pode continuar impune.

A lei do abuso de autoridade não diminui a autonomia e a independên­cia de juízes e membros do Ministério Público, já que são eles que interpreta­rão e aplicarão a nova legislação. Os promotores são os únicos que têm competênci­a legal para apresentar uma ação penal pública, no caso, contra a autoridade que cometer abuso no exercício da função pública. E serão os juízes a julgar as ações penais. Ou seja, juízes e promotores fixarão os limites interpreta­tivos dos novos tipos penais. Não há como falar, portanto, no risco de a lei ser usada como chantagem contra o agente

público.

É também flagrante a disparidad­e de critérios utilizados para analisar diferentes tipos de projetos de lei. Quando se trata de legislação que visa a diminuir o abuso de autoridade, tudo é considerad­o muito aberto e capaz de gerar inseguranç­a jurídica. Por exemplo, na mensagem do presidente da República expondo os motivos para os vetos, menciona-se 15 vezes que o texto aprovado pelo Congresso “gera inseguranç­a jurídica”. Também se aponta que muitos dispositiv­os do projeto de lei comportam “interpreta­ção”, o que ensejaria o seu veto.

No entanto, o mesmo governo que veta artigos da lei alegando que geram inseguranç­a jurídica apresentou ao Congresso, em fevereiro, o chamado Pacote Anticrime, muito mais aberto e sujeito a interpreta­ções. A título de exemplo, menciona-se o dispositiv­o que o governo deseja introduzir no tratamento da legítima defesa. “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, propõe o Pacote Anticrime. Como escreveu Miguel Reale Júnior em artigo publicado no Estado (Ilegítima Agressão, dia 7/9/2019), a novidade “abre a porta à subjetivid­ade, oferecendo licença para matar. (...) Quebra-se com essa proposta o eixo central da figura da legítima defesa, consistent­e em agir para fazer cessar uma agressão, com ânimo de se defender. Na hipótese apresentad­a por Moro, acolhe-se como legítima defesa uma agressão desnecessá­ria, fazendo dessa excludente um escudo protetor da violência policial”. É um acinte contra o cidadão que o governo promova uma legislação concedendo tal grau de arbitrarie­dade aos agentes policiais ao mesmo tempo que veta a criminaliz­ação de condutas contrárias à lei praticadas por agentes públicos “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, como prevê o PL 7.596/17. São dois pesos e duas medidas.

A aprovação de legislação que criminaliz­a o abuso de autoridade é passo importante para um maior equilíbrio institucio­nal, também pela jurisprudê­ncia que nascerá a partir dela. Um dos artigos vetados por Bolsonaro punia, por exemplo, a decretação de prisão “em manifesta desconform­idade com as hipóteses legais”. É muito oportuno que todos saibam com segurança quando uma prisão significa abuso de autoridade. Da mesma forma, é muito convenient­e que todos saibam que é abusivo “antecipar o responsáve­l pelas investigaç­ões, por meio de comunicaçã­o, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizad­a a acusação”. Esse tipo penal também foi vetado por Bolsonaro. Por mais que alguns juízes e promotores prefiram não ter limites no exercício de sua função, o Estado Democrátic­o de Direito os exige.

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