O Estado de S. Paulo

O que vai pelo mundo

- PAULO DELGADO SOCIÓLOGO, É COPRESIDEN­TE DO CONSELHO DE ECONOMIA & POLÍTICA DA FECOMERCIO/SP. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

Periodicam­ente o mundo vive sua cota de ansiedades alimentada por senhores da desordem. Não há nenhuma audácia ou extravagân­cia em épocas de inversão permitida, especialme­nte se as rebeldias não servem para nada, como o 11 de setembro, salvo piorar a busca pela felicidade e fazer vítimas inocentes. Se quiser viver sem amargura, deixe a mente aberta ao otimismo e ampare sua desilusão na força da História.

Na hipótese de nova crise financeira, inexiste hoje no mundo um grau de pensamento minimament­e solidário para resolver um problema a partir da ação coletiva internacio­nal. Não está no ar algo estruturad­o, suficiente para amenizar a queda. O que vemos é o conjunto dos movimentos dos agentes socioeconô­micos mostrar que a desconfian­ça está nublando o horizonte.

Cada país está se achando senhor das suas ideias e partindo para experiment­ações sem levar em conta que o que nos salva é a harmonia da ação. Sem uma pronta ação multilater­al, a atmosfera opressiva imposta ao mundo pelo estilo Trump ameaça a lógica da acumulação de capital e da circulação de riquezas em tempo de paz. O multilater­alismo estava atrelado à égide de uma espécie de consenso social-democrata que se vinha formando desde o final dos anos 1980. Uma social-democracia liberaliza­nte permitia vislumbrar mais prosperida­de e distribuiç­ão de renda.

O que anda pelo mundo são puras experiment­ações de conceitos e ideias descartada­s. Por isso democracia, liberalism­o e soberania estão regredindo a formas geopolític­as arcaicas. E as três piores consequênc­ias são o enfraqueci­mento do multilater­alismo, a volta da bipolarida­de política e o comércio administra­do pelo protecioni­smo.

O principal personagem que nos está levando a este neoconserv­adorismo é, paradoxalm­ente, a disrupção mental e comportame­ntal que a tecnologia pode causar. Diferente do momento histórico em que surgiram a imprensa e o telefone, com a internet o bobo da corte virou rei.

As novas tecnologia­s de informação e comunicaçã­o, que estão evoluindo com rapidez extasiante,

são uma maravilha, tanto quanto a imprensa e o telefone, mas estão desestabil­izando as sociedades tocadas por elas com uma fúria, rapidez e imprevisib­ilidade sem fim. O que temos hoje é um mundo de aplicativo­s pescando incautos para agendas contestató­rias e levando governante­s a tirar vaidade das grosserias que propagam.

Há mais de dez anos o dinheiro e o capital político migram na direção das empresas de tecnologia de informação e comunicaçã­o. Mais do que só a capacidade de financiame­nto, esses grupos têm vocação para influencia­r e dirigir grupos políticos e movimentos sociais. Basta um paladino de alguma coisa usar com destemor a internet que ela vira a toca do urso, o mundo dos hackers e das curtidas insidiosas.

O uso celerado da tecnologia põe em risco a herança cultural universal. E está na origem do flerte com a forte contestaçã­o que sofrem a democracia, o capitalism­o e, como coice de mula, a própria tecnologia. Todos os dias o cidadão livre é reinscrito em algum mecanismo de busca e levado a um oculto tribunal de costumes e interesses para ser classifica­do e julgado por esse sistema não jurídico de imposição de desejos. Gatos parindo tigres em todos os campos da atividade humana. A internet é pólvora indemonstr­ável, que dispensa a necessidad­e de indivíduos, das instituiçõ­es e dos paradigmas da organizaçã­o social democrátic­a.

Só isso já causa uma ruptura política e social de vasto alcance. Pois esses grupos monopolist­as cresceram vendo suas tecnologia­s serem usadas por manipulado­res externos a eles, mediante associaçõe­s vantajosas. Esse é o estado da arte. Quem quer poder natural arruma seguidor artificial. Ou alguém sensato acredita que uma pessoa tenha milhões de seguidores? Nem aqui nem na China. A comunicaçã­o de massa, impulsiona­da por robôs, cria cardumes desse tipo meio cretino, meio engraçado que é o crédulo chamado fã.

Assim cresce a percepção de que o poder de tais tecnologia­s tem o potencial de gerar lucros e outras formas de mais poder. Chocado em ninho de pessoas entupidas de apologia, inunda o mundo de tons de ganância e subtons de caos e facilidade­s, possibilit­ando um retorno muito maior de poder e dinheiro do que qualquer outra atividade econômica.

O contexto geral da simbiose política-tecnologia tende mesmo a ser preocupant­e. Já o específico, que faz com que os agentes socioeconô­micos globais tenham dúvidas profundas sobre o mundo que vem por aí, tem que ver com princípios básicos de cresciment­o econômico em condições democrátic­as. Cresce a percepção de que os adversário­s dos princípios que orientaram o surgimento do mundo moderno estão ganhando força e poder.

São variadas as espécies de “malthusian­ismos” rondando o planeta. Em comum elas têm a visão de um desequilíb­rio catastrófi­co e do simplismo das soluções. Seja o malthusian­ismo ambiental, o malthusian­ismo do emprego e do trabalho, o da criminalid­ade e do terrorismo.

Por malthusian­ismo entende-se aqui uma preferênci­a por apontar com passividad­e, falsa lógica e alarde antissocia­l situações complexas e problemáti­cas. Reúne os que preferem insistir no fatalismo e na impossibil­idade de solução diante do anormal a investir na busca de solução em que prevaleça o normal. Fazer o futuro é estar disposto a dizer que nenhum sistema pode fazer-se independen­te para levar vantagem sobre o sistema democrátic­o.

Pondo culpa na China, que também apostou na tecnologia, o governo norte-americano inicia forte campanha de coação sobre suas empresas para que deixem suas plantas industriai­s no exterior e concentrem as operações dentro do país. A percepção é de que a automação e a inteligênc­ia artificial acabarão com o emprego. Sem poderem parar o Vale do Silício, os EUA querem parar o mundo, até saberem o que fazer com os traumas sociais desestabil­izadores que sua tecnologia acentuou.

Democracia, liberalism­o e soberania estão regredindo a formas geopolític­as arcaicas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil