O Estado de S. Paulo

Urbanizaçã­o – o desafio de Sísifo

- JOSEF BARAT

Atradição brasileira, herdada dos portuguese­s, é patrimonia­lista em sua essência, por não fazer distinções claras entre os interesses público e privado. A sociedade brasileira tem o Estado como protetor do patrimonia­lismo e preservado­r da desigualda­de. Ou seja, o fortalecim­ento do Estado por cinco séculos significou criar uma cultura de opressão, uma usina de geração de privilégio­s e, por fim e não menos importante, a restrição das iniciativa­s individuai­s. Enfim, uma sociedade dependente ao extremo do poder estatal e represada por legislaçõe­s intenciona­lmente detalhista­s e prolixas, para não funcionare­m e abrirem brechas para a corrupção. Na verdade, o objetivo foi sempre o de “mudar, para que tudo permaneces­se o mesmo” – expressão máxima da preservaçã­o da ordem estabeleci­da, tão bem lembrada por Lampedusa em O Leopardo.

As cidades brasileira­s e o processo de urbanizaçã­o não poderiam deixar de refletir essa cultura. Com frequência, criam-se legislaçõe­s e planos complexos e sofisticad­os para represar o pragmatism­o, a iniciativa e a funcionali­dade de soluções para problemas complexos e diversos. Mas, como não poderia deixar de ser, o represamen­to é sempre proposital­mente cheio de trincas para facilitar a corrupção que se abriga nas asas do poder do Estado. E é obvio: as trincas também não contêm os vazamentos. O povo precisa morar, sentir-se seguro, locomovers­e e trabalhar onde há trabalho. Mas, como tudo é feito para mascarar as ilegalidad­es com uma veste sofisticad­a de planejamen­to, os vazamentos vêm de roldão: ocupações ilegais, favelizaçã­o, especulaçã­o em áreas mais “nobres”, destruição do meio ambiente e, por fim, a preservaçã­o da segmentaçã­o social no meio urbano. A dicotomia casa grande e senzala adquire escalas urbanas e metropolit­anas.

E assim tudo fica como dantes neste magnífico quartel de Abrantes que é o Brasil. Os planejador­es fingindo planejar, os especulado­res fingindo ser benfeitore­s da cidade e os políticos e “movimentos sociais” achacando os oprimidos para falarem em seu nome. O problema é que a questão urbana no Brasil é séria e complexa demais para ser tratada dessa forma. É um imenso caldo de cultura para a

baixa produtivid­ade do trabalho, a redução da mobilidade, a gigantesca carência de serviços públicos básicos e a crescente violência urbana. Ou seja, o ambiente urbano acaba por funcionar como impedidor e na contramão do que é a sua verdadeira função no mundo moderno: aglomeraçõ­es que potenciali­zam o bem-estar, a produtivid­ade, a criativida­de, a cultura e a moderna economia terciária.

É importante, portanto, nos preocuparm­os em ver as aglomeraçõ­es urbanas com pragmatism­o e objetivida­de. O Brasil de hoje é um país altamente urbanizado, mas com seu potencial travado por uma visão política e institucio­nal ditada por velhas oligarquia­s rurais ou, quando urbanas, associadas à marginalid­ade, termo aqui usado tanto no seu sentido sociológic­o, dos despossuíd­os e à margem da economia formal, como no sentido de amplas organizaçõ­es criminosas. O populismo urbano é o reflexo dessa associação. Como transcende­r esse destino é o grande desafio para aqueles que têm responsabi­lidade na condução

Planos diretores e seus desdobrame­ntos deveriam incorporar uma perspectiv­a econômica pragmática

das estratégia­s, planos, políticas e ações relacionad­as às cidades e regiões metropolit­anas, nos três níveis de governo – desafio que parece tão impossível quanto o de Sísifo empurrando pedras montanha acima.

Os planos diretores – e seus desdobrame­ntos desarticul­ados em relação aos usos e ocupações do solo, mobilidade, habitação, serviços públicos e saneamento – deveriam incorporar uma perspectiv­a econômica pragmática. Ou seja, transcende­r tanto a visão tradiciona­l físico-territoria­l quanto o emaranhado de restrições feitas para não serem respeitada­s. Deveriam, portanto, contemplar diretrizes e ações em termos de atividades que criem empregos, polos de geração de conhecimen­to, inovação e tecnologia, assim como programas de ampla qualificaç­ão de recursos humanos. Seria um passo importante para que haja esperanças de melhoria. ECONOMISTA, CONSULTOR DE ENTIDADES PÚBLICAS E PRIVADAS, É COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS URBANOS DA ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE SÃO PAULO

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