O Estado de S. Paulo

O perigo da radicaliza­ção

Cinema. ‘Adeus à Noite’, que estreia amanhã, traz Catherine Deneuve como avó de garoto que abraça a causa da Jihad na França

- Luiz Carlos Merten

Em sua oitava parceria com a estrela Catherine Deneuve, André Téchiné volta-se para um tema visceral – a radicaliza­ção política e religiosa que está no centro dos talvez maiores cataclismo­s atuais. Catherine interpreta uma avó e Muriel ainda é uma bela mulher, como a própria atriz, de 75 anos. Possui uma fazenda de criação de cavalos, uma escola de equitação. Tudo nos conformes, e aí chega o neto, que vem se despedir. Diz que está indo para o Canadá, mas Muriel o surpreende fazendo suas orações. Descobre que ele se converteu ao islamismo e, na verdade, está partindo para a Síria, para se integrar à Jihad muçulmana.

L’Adieu à la Nuit, Adeus à Noite, título do filme, dialoga muito bem com Meu Filho Querido, do tunisiano Mohamed Ben Attia, um dos mais belos filmes lançados este ano no País. O de Ben Attia era sobre um pai desesperad­o que seguia a trilha do filho na Síria, depois que o garoto partia, sem sequer dizer adeus. Se pudesse, ou se soubesse dos planos do jovem, ele muito provavelme­nte faria o mesmo que Muriel – teria, a qualquer custo, tentado impedi-lo de partir. Para complicar, no de Téchiné, o neto se apropria de dinheiro da avó para entregá-lo ao grupo que financia os jihadistas e, com isso, a narrativa ganha uma dimensão de thriller.

Deneuve, na coletiva do filme, em fevereiro, em Berlim – Adeus à Noite concorreu ao Urso de Ouro –, disse que não via nada demais, em sua idade, em interpreta­r uma avó. Como atriz, os anos de A Bela da Tarde ficaram para trás. Encarar o tempo não é uma dificuldad­e – difícil é expressar o sentimento dessa avó. “É um dilema hamletiano que ela vive. Ao impedir o neto de partir, ela pode achar que está agindo certo, mas o está impedindo de viver a vida dele, de ser ou não ser o que quer.” E Téchiné: “Esse filme nasceu de um mal-estar profundo. Cresci meio isolado, numa pequena cidade do sul da França, numa família de ascendênci­a espanhola. Era como se a gente vivesse num feudo. Foi o cinema que me fez descobrir o mundo, e a cidadania, primeiro como crítico, depois como diretor. Sempre gostei desses personagen­s que não se integram e carecem de pertencime­nto, porque eu próprio muitas vezes me senti assim”.

Intelectua­l de formação católica e marxista, ele naturalmen­te se interessou pelas questões dos refugiados e imigrantes, dos povos do Magreb na França. “Como todo mundo da minha geração, sofri com todos esses ataques da Jihad, que colocam à prova noções de humanidade e tolerância. Tentava me informar, manter atualizado. O filme nasceu da convergênc­ia de vários fatores. Havia esse desejo de entendimen­to, mas creio que fundamenta­l foi o livro de David Thomson, Les Français Jihadistes, feito de entrevista­s com jovens que aderiram à causa islâmica e à Jihad. São diálogos muito crus, muito diretos, que ficaram comigo. Comecei a pensar se seria capaz de criar uma mise-en-scène para eles, se seria possível transforma­r esse material de reportagem em ficção cinematogr­áfica. E foi assim que o filme começou a nascer.”

O que realmente lhe interessav­a era entender a psicologia desses jovens. “Numa era de tanto individual­ismo, eles elegem o sacrifício. Morrer por uma causa – por quê?” Embora a palavra dos jovens tenha lhe fornecido o impulso inicial, Téchiné explica seu ponto de vista. “Sentia que só conseguiri­a ser honesto adotando o olhar de uma pessoa da minha geração, e foi assim que Muriel se foi delineando. Antes mesmo de contatar Deneuve, sabia que teria de tê-la nesse projeto. Conheço Catherine há muito tempo e conheço sua inquietaçã­o. Nisso somos iguais – gostamos de arriscar, de nos renovar. É um tema perigoso, e sabia que teria de contar com ela.” E Téchiné disse mais: “Foi, de nossa já longa colaboraçã­o, o filme em que mais exigi de Catherine. Espero que não tenha sofrido muito (Ela retrucou que não foi nada que não pudesse aguentar). Muriel é muito forte no seu lado profission­al, mas é vulnerável no afetivo, em relação a esse neto que desconhece. Era o que queria colocar na tela, e sem carregar na boa consciênci­a da nossa geração. Esse filme não é para dizer como somos melhores.”

“Creio que foi fundamenta­l o livro ‘Les Français Jihadistes’, de David Thomson, feito de entrevista­s com jovens que aderiram à causa islâmica e à Jihad” André Téchiné

 ?? FOTOS PANDORA FILMES ?? Muriel. La Deneuve, assim como Téchiné, gosta de se arriscar
FOTOS PANDORA FILMES Muriel. La Deneuve, assim como Téchiné, gosta de se arriscar
 ??  ?? Avó e neto. Deneuve, como Muriel, e Kacey Mottet Klein, que faz Alex
Avó e neto. Deneuve, como Muriel, e Kacey Mottet Klein, que faz Alex

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil