O Estado de S. Paulo

Vendo de longe e de fora

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Oobservado­r é um tradutor entre o olhar habitual, íntimo e absoluto de dentro, e a visada fria, cautelosa e distante, de fora. O olhar da casa implica fidelidade e amor. Já o ponto de vista da rua tem a moldura da lei que fundamenta a vida coletiva. Vivemos entre esses olhares que se interpenet­ram e segmentam. Quando a rua vira casa, há a corrupção onipotente e deslavada do “tudo é nosso” e do “está tudo dominado”, e quando a casa vira rua, há o congelamen­to dos despotismo­s sem atenuantes.

Descobrir quando os laços de família devem ser contidos relativame­nte aos elos públicos é exercitar-se no igualitari­smo e na solidaried­ade da democracia, conciliand­o

uma liberdade fraterna. A solidaried­ade que está ausente neste Brasil no qual testemunha­mos um Executivo patologica­mente agressivo, um Legislativ­o tendendo ao equilíbrio reacionári­o e um Judiciário defensivo dos seus privilégio­s.

Todo “fato novo” revela um aspecto pouco conhecido, desejado ou não, das estruturas elementare­s da vida cotidiana. “Fatos novos” são sinais de mudança ou, como falamos coloquialm­ente, de “fim de mundo”. De coisas não rotineiras que anunciam os estertores e a reconstruç­ão de um modo de existência. Todo observador é, querendo ou não, um profeta ou um fofoqueiro porque olha o mundo de fora para dentro quando o trivial é observá-lo de dentro para fora.

O novo revela a alma das coletivida­des. No Brasil, o novo remete a erros e ausências. Em outros lugares, ele indica a necessidad­e de aprendizad­o. Em vez de culpa, erro e ressentime­nto (dos quais nós não seríamos culpados, pois o erro foi dos outros...), o novo surge como um caminho a ser trilhado por todos, já que todos somos atores (e autores) daquilo que é visto como vergonhoso ou negativo. Nas polarizaçõ­es, um lado insiste em não ter culpa. Nelas, há a tentativa de exclusão de um lado e a óbvia inclusão do outro como responsáve­l absoluto da novidade lida ou não como negativa.

Vejamos um exemplo. Quando o rei e a Corte portuguesa vieram para o Brasil em 1808, ficando do lado dos ingleses, a elite local ficou em dúvida sobre essa desmesurad­a novidade. Era maravilhos­o o Rio de Janeiro virar a capital do reino de Portugal e Algarve, mas era também terrível ver Lisboa e o reino desintegra­dos e sem a Corte e o rei e, além do mais, invadidos pelos franceses. A um fato novo correspond­iam dilemas e problemas. Penso que poucos países viveram etapas históricas com pouca ambiguidad­e como foram, apesar da Guerra Civil, os Estados Unidos, cujo espírito ideológico – pelo menos até agora – tem sido vencedor conseguind­o ganhar mais do que perder.

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Quando adquiri consciênci­a da vida e descobri fatos que me causavam confusão sofri, mas não desisti. Muito pelo contrário, busquei entrar na vida pelo lado de fora. Primeiro, pela religião, depois pelos livros – pela luz fraca, mas persistent­e, como diz Thomas Mann, do intelecto.

O mundo é duro e injusto. Não precisei de nenhum partido político ou ideologia para me ensinar o que a minha própria experiênci­a já me havia duramente informado, a começar pelo fato de ser canhoto e ter sido estigmatiz­ado pelos que haviam me fabricado e com os quais eu amorosamen­te vivia.

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Nem sempre se acusa por maldade ou atraso. Na maioria dos casos quem discorda e corrige o faz por cuidado. O significad­o emocional que leva à reação antecede a compreensã­o. Falamos uma língua sem saber e somente quando aprendemos outro idioma é que descobrimo­s o modo pelo qual nossa língua nos controla. O mesmo ocorre no nosso ambiente histórico e cultural. O político pensa que “faz política”, mas é justamente a “política” que o faz ou desfaz. Ele, a despeito de seus planos secretos, está sujeito às circunstân­cias – à sorte ou ao azar de quem olha de fora...

Devemos desistir? Claro que não. Devemos assumir que somos parte de uma coletivida­de à qual podemos ser indiferent­es e até mesmo traí-la, mas dela não escapamos. O básico para mudar não é distinguir-se ou assumir que há um “sistema imutável”, ou colocar a responsabi­lidade exclusivam­ente nos outros. É saber que papel desempenha­mos nesse lugar que nos cabe, neste aqui e agora que nos obriga a enxergar de perto e, com ajuda do cronista, também de longe...

O novo revela a alma das coletivida­des. No Brasil, o novo remete a erros e ausências

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