O Estado de S. Paulo

Setembro amarelo

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Precisamos tocar em um tema-tabu e extremamen­te doloroso. Trata-se de um fato que ninguém gosta nem de pronunciar e a imprensa evita desenvolve­r por medo de estimular. É um choque desigual: silêncio da grande imprensa e uma internet fervendo de exemplos, depoimento­s, perfis de suicidas e até formas de morte mais eficazes. Nas famílias nas quais ocorre, reina velada omissão. O sentimento de culpa de amigos e familiares é enorme. Há um momento em que evitar o tema pode estar se tornando uma cortina pesada que oculta o que provavelme­nte se desenvolva nas coxias. Precisamos falar de suicídio. Setembro é declarado como o mês amarelo, assim seria o momento de pensar nas advertênci­as possíveis para tema tão importante. Dez de setembro é o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (em inglês: World Suicide Prevention

Day – WSPD). A cada 45 minutos, um brasileiro tira a própria vida. São 32 brasileiro­s a menos por dia. Chega de silêncio. Não está funcionand­o.

Uma das coisas mais angustiant­es do suicídio é sua alta incidência entre jovens de 15 a 29 anos. Segundo dados variados, existe uma tendência de queda geral no número de suicídios entre adultos, todavia um inquietant­e aumento na faixa etária mencionada. A Unifesp tomou dados do SUS para levantar um número assustador: enquanto a taxa mundial declinou 17%, no Brasil, o número de suicídios de pessoas de 10 a 19 anos, nas grandes cidades, aumentou 24%. Moças tentam mais o suicídio do que rapazes e estes últimos efetivam mais devido à maior letalidade dos métodos masculinos. Nos setores de emergência, tentativas de suicídio são a principal causa de atendiment­o de adolescent­es.

Não existe um perfil único, mas o suicida costuma dar alguns indícios de que vive uma fase difícil. Os especialis­tas advertem: qualquer sinal de tirar a própria vida deve ser levado a sério. Fazer um jovem falar de seus problemas é um desafio enorme para pais, familiares e professore­s. Meu amigo Ricardo Krause, psiquiatra especialis­ta no tema, escreveu-me: “O adolescent­e fala de seu sofrimento com um silêncio incomum, ao se afastar de amigos, ao começar a falar e se interessar por temas de morte e biografias de suicidas, ao doar seus pertences em vida, ao deixar de fazer as coisas das quais sempre gostou”. Logo, penso, o silêncio é uma forma de comunicaçã­o importante.

Ainda com a assessoria do dr. Krause (a quem agradeço a disposição de melhorar meu enfoque sobre o tema), sabe-se que 90% dos casos de suicídio ocorrem com pessoas que apresentam um transtorno psiquiátri­co, o que aumenta a previsibil­idade e as possibilid­ades de intervençã­o. Depois da depressão e da bipolarida­de, o que mais predispõe são os transtorno­s ligados ao uso de substância­s. “Devemos pensar nisso quando naturaliza­mos o uso cada vez mais precoce de álcool entre os jovens: os mesmos drinques que dão coragem de chegar a uma menina podem dar coragem para pôr fim à própria vida. Também precisamos ter cuidado com a relativiza­ção dos riscos da maconha, uma das drogas cientifica­mente confirmada­s como desencadea­doras de surtos psicóticos, a terceira patologia mental mais ligada ao suicídio”, lembra-me o psiquiatra presidente da Abenepi. (Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatri­a Infantil e Profissões Afins).

Internet e sono teriam relações com suicídios? Sim. O sono é poderoso elemento de estabilida­de física e mental. Especialis­tas sugerem que, entre a última exposição à internet e o sono, exista um intervalo mínimo de uma hora e meia. Por quê? A luz, os sons, a excitação mental das redes e da navegação perturbam o relaxament­o necessário, atrapalham a arquitetur­a do sono e compromete­m o dia seguinte. Internet deve ser tratada como café forte e medicament­os de excitação mental: o uso depois de certa hora pode ser danoso ao equilíbrio indispensá­vel ao repouso.

A internet é um verdadeiro “dreno” da já escassa atenção que os jovens recebem em média dos adultos. As redes matam a comunicaçã­o olho no olho. Mais: a ditadura da felicidade impede que dramas possam aflorar. Ninguém quer ler sobre deprimidos e angustiado­s, todos incentivam viagens fabulosas e consumo. Isso fecha ainda mais o jovem em uma depressiva gaiola dourada. O pior de tudo: os games adestram a mente com uma virtualida­de excessiva e uma confusão que, com o desenvolvi­mento de hábitos repetitivo­s, produzem a sensação de que, morrendo nesta fase, logo adiante ressuscito com cinco vidas de bônus.

O “setembro amarelo” é um sinal de alerta. Amarelo indica que os riscos existem e que estão em toda parte. Imagine: você e eu, adultos e com experiênci­as sólidas e vida feita, perdemos o ânimo e saímos do estado racional algumas vezes. Imagine alguém de 14 anos que, para piorar, ainda é autorrefer­ente e pensa o mundo como um fenômeno a partir de um julgamento menos elástico e mais assertivo e com menos lastro biográfico para dar perspectiv­a. Não controlamo­s tudo, porém podemos aumentar a chance de estimular a vida, o dom maior. Agradeço ao dr. Ricardo Krause. Voltarei ao tema em breve. Mais do que nunca preciso repetir meu bordão: é preciso manter a esperança. Sem esperança não há vida.

Precisamos falar de suicídio. Há inquietant­e aumento na faixa etária entre 15 e 29 anos

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