O Estado de S. Paulo

Morrer em Lodz

- •✽ SIMON SCHWARTZMA­N

Neste agosto de 2019 fui à Polônia participar de um encontro da família de minha mãe, descendent­es de antigos habitantes e sobreviven­tes do gueto da cidade de Lodz, liquidado pelos nazistas 75 anos atrás. Dos 200 mil judeus confinados em quatro quilômetro­s quadrados e forçados a trabalhar como escravos desde 1942, menos de 10 mil conseguira­m escapar. Todos os demais morreram de fome, doenças, execuções, nas câmaras de gás e nos fornos crematório­s de Chelmno e Auschwitz.

Uma pequena tragédia, dentro dos horrores do extermínio programado de 6 milhões de judeus, dos quais 500 mil no gueto de Varsóvia, sem falar nas dezenas de milhões de mortos na União Soviética, na China e em outros países na 2.ª Guerra. Mas cada tragédia, com suas histórias de resistênci­a, morte e sobrevivên­cia, que atingem a cada pessoa e cada família, é única e incomensur­ável, e precisa ser sempre relembrada para entender o que aconteceu e evitar sua repetição.

Em 1961, escrevendo sobre o julgamento de Adolph Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt criou uma grande controvérs­ia ao falar sobre a “banalidade do mal”, a maneira rotineira e burocrátic­a como Eichmann e, por extensão, o governo nazista administra­vam a máquina de extermínio, desprovido­s aparenteme­nte de qualquer sensibilid­ade ou motivação de ódio, simplesmen­te “obedecendo ordens”. Para seus críticos, essa interpreta­ção era inaceitáve­l, porque de alguma forma eximia os nazistas de culpa e responsabi­lidade por suas atrocidade­s, pelas quais deveriam ser condenados e punidos.

Penso que, ao contrário, Hannah Arendt falava de uma culpa muito mais profunda e perturbado­ra, que é a da normalizaç­ão da violência, que traz o problema da responsabi­lidade muito mais perto de cada um de nós do que gostaríamo­s de reconhecer. Em graus diferentes, todos, de alguma maneira, nos insensibil­izamos com os absurdos e tragédias que presenciam­os no dia a dia, ou que nos chegam a cada momento pelos noticiário­s, por conformism­o ou simplesmen­te

para continuar sobreviven­do. Em vez de uma humanidade dividida entre monstros morais, por um lado, e justos e inocentes, por outro, o que temos são seres humanos imperfeito­s que se adaptam às circunstân­cias em que vivem e podem ser capazes, em situações extremas, tanto de ações terríveis quanto de comportame­ntos éticos, heroicos e moralmente íntegros. Será que, por isso, somos todos culpados, ou todos inocentes?

Existem duas perguntas que surgem aqui, a de por que esses comportame­ntos violentos e destrutivo­s crescem e ganham raízes em determinad­os momentos, e a da conformida­de de pessoas que não pensam ou agem da mesma maneira, mas se tornam coniventes.

Uma das grandes questões sobre a 2.ª Guerra é como a Alemanha, até então um país tão proeminent­e na ciência, na cultura e na filosofia, chegou a esses extremos, com o apoio ou ao menos a passividad­e de grande parte de sua população. Uma das explicaçõe­s é a crise econômica e institucio­nal dos anos 20, que levou à polarizaçã­o crescente da política e abriu espaço para um demagogo que, prometendo um futuro de grandeza, dava voz aos sentimento­s de raiva e frustração da população, liberando os preconceit­os e estimuland­o o ataque a um suposto inimigo bem próximo e indefeso, os judeus. O culto à violência, a grosseria, a falta de limites e o anti-intelectua­lismo dos nazistas eram legitimado­s, ainda, por toda uma corrente de filósofos e ensaístas que elaboravam ideologias autoritári­as, militarist­as, nacionalis­tas, populistas e racistas, que foram tornando o nazismo e o antissemit­ismo cada vez mais “respeitáve­is” e aceitáveis.

Mas era uma aceitação limitada, e muito foi escrito sobre o desprezo dos generais alemães, de origem aristocrát­ica, pelo oficial subalterno que chegara ao poder, e que tinham a ilusão de poder controlar. Acabou prepondera­ndo, no entanto, o pragmatism­o, não só dos militares, mas de empresário­s e muitos intelectua­is, com triste destaque para o filósofo Martin Heidegger. Hitler estava no poder, encarnava a vontade do povo alemão, era uma oportunida­de para a economia crescer e conquistar novos território­s, e era melhor fechar os olhos para detalhes desagradáv­eis, como o extermínio dos judeus, homossexua­is, ciganos e opositores, e ficar de seu lado.

Em Lodz, a versão trágica do pragmatism­o foi o curto reinado de Chaim Rumkowski, judeu designado pelos alemães como presidente do Conselho Administra­tivo – o Judenrat – e comandante do gueto. Rumkowski fez do gueto uma fábrica de suprimento­s de guerra, escravizan­do a população, e governou com mão de ferro, ajudado por uma polícia judaica que reprimia com violência as tentativas de resistênci­a e selecionav­a pessoas para os campos de extermínio, ao mesmo tempo que garantia para seu grupo a comida, os espaços e as condições mínimas de sobrevivên­cia que eram negados aos demais. A justificat­iva era que, colaborand­o, poderiam livrar mais gente do extermínio, e sobreviver. De fato, o gueto de Lodz durou um ano mais que o de Varsóvia, e Rumkowski e sua família foram dos últimos a ser enviados para os fornos crematório­s, em 1944.

No gueto de Varsóvia, no início Adam Czerniakow também tentou colaborar, mas acabou se suicidando quando os alemães ordenaram o aumento do número de deportados. Um ano depois, os habitantes do gueto se insurgiram, e foram massacrado­s pelas tropas da SS em 1943.

Em Lodz, como em Varsóvia, a situação era extrema, a máquina de extermínio não se detinha e a morte era inevitável. Mesmo assim, restava ainda a opção de cada um entre o conformism­o e a rebelião, mesmo que à custa da própria vida, de qualquer forma, efêmera.

Eichmann e Rumkowski não eram somente peças de uma engrenagem, tinham escolhas que poderiam fazer e não fizeram, e são essas escolhas, quando exercidas, que ainda nos permitem manter esperança na humanidade.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A situação era extrema, a máquina de extermínio não se detinha. Mesmo assim...

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