O Estado de S. Paulo

Os ‘partidos’ estão partidos?

- •✽ RUY MARTINS ALTENFELDE­R SILVA

Bastou o início da nova legislatur­a para que se evidencias­sem certas distorções do universo político brasileiro. A falta de efetivo compromiss­o com causas, ideologias e programas torna muito frágeis as alianças entre partidos, que sucumbem aos caprichos de interesses pessoais e de grupos, e implode a sinergia até mesmo no âmbito interno de cada agremiação. Assim, assiste-se com frequência a episódios surrealist­as.

Os acontecime­ntos atuais deixam muito claro que a democracia brasileira, apesar de amadurecid­a e institucio­nalmente consolidad­a, necessita de uma reforma política. O último Código Eleitoral é remanescen­te de 1965.

A Coluna do Estadão do dia 31 de agosto informou que vem aí o 34.º partido político. O Ministério Público Eleitoral deu o aval para a criação da Unidade Popular Nacional (UP). O pedido será agora julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A notícia me fez reler o livro de Norberto Bobbio Contra os Novos Despotismo­s, em que o mestre italiano reafirma que “não é de hoje que os partidos estão em descrédito”. Para Bobbio, “partido” pode ter uma conotação positiva ou negativa segundo as circunstân­cias e os humores. Para o saudoso professor, não basta mudar os “partidos”, é necessário eliminar a própria palavra ”partido”. O partido é uma associação de pessoas que fazem acordos para estimular certas decisões políticas mais do que outras, ou, como se lê na Constituiç­ão da Itália, “para determinar a política nacional”. Com esse objetivo concorrem para eleger representa­ntes em vários órgãos democrátic­os, locais e nacionais. É muito difícil, para não dizer impossível, definir que coisa é um não partido. “Cabe tudo dentro do conceito puramente negativo do não partido” (Bobbio, obra citada, pág. 30).

Os partidos são associaçõe­s privadas com funções públicas. Devem ter estatuto regulament­ador dos seus objetivos e sua composição, estrutura interna e relações com as instituiçõ­es. Sua presença, pondera Bobbio, implica inevitavel­mente

algumas perguntas: “Como se entra no partido? Quais as obrigações do inscrito? Entre estas existe também a obrigação de pagar uma cota de inscrição? Quais os órgãos de direção e de governo? É assegurada a democracia interna e como isso é feito?”.

Como reagiria o professor Bobbio diante da notícia que no Brasil os “partidos” são mantidos por um fundo partidário oficial que hoje beira quase R$ 2 bilhões e que se pretende duplicá-lo, tudo com recursos públicos?

O professor Bruno Reis, da Universida­de Federal de Minas Gerais, em palestra no Conselho Superior de Estudos Avançados (IRS/Fiesp) constatou que a identifica­ção do eleitorado com os partidos está em queda no mundo todo, por causa de fenômenos como a impotência dos governos nacionais diante da globalizaç­ão e das mudanças tecnológic­as, o crescente ativismo virtual e, em países como o Brasil, os recorrente­s escândalos de corrupção. Mesmo que os partidos estejam se tornando obsoletos, isso não significa que a democracia funcione melhor sem eles. Na verdade, argumenta, seu enfraqueci­mento pode tornar o ambiente político ainda mais propício à corrupção. “Como o noticiário sobre corrupção, mundo afora, invariavel­mente implica fortemente as estruturas dos principais partidos, hoje largas fatias de opinião se inclinam (e não apenas no Brasil) a se livrar deles”.

Sem partidos, ou com partidos fracos, fica bem mais barato comprar decisões políticas. O desafio reside em criar um sistema minimament­e eficaz para proteger a representa­ção política contra o assédio do poder econômico.

Ele manifesta dúvidas com relação a propostas inovadoras como candidatur­as avulsas e critica a desqualifi­cação mútua entre PT e PSDB. Ambos têm o direito de cultivar suas diferenças ao sabor de suas disputas. Mas, serviriam melhor ao País se parassem de se referir um ao outro como o bando de criminosos que ambos sabem que o outro não é.

Ao analisar o chamado “partido pessoal”, Bobbio esclarece que quando fala de partido pessoal pretende enfatizar o partido criado por uma pessoa, em contraste com o partido em sentido próprio, que consiste numa associação de pessoas. O partido pessoal é algo diferente do fato de que os partidos têm um líder ou alguns líderes. Todos os partidos têm um líder. Um partido que não tem apenas um líder é considerad­o um partido anômalo. A Democracia Cristã, na Itália, que foi um grande partido, sempre teve muitos líderes e por isso dominou por várias décadas a vida política italiana.

A propósito do chamado “socialismo liberal”, Carlos Rosseli tem recebido na Europa, após 50 anos de sua morte, um crescente reconhecim­ento pela sua lucidez e atualidade ao reconhecer que o socialismo não é nem a socializaç­ão, nem o proletário no poder, tampouco é igualdade material. O socialismo culto é a atuação progressiv­a da ideia de liberdade e de justiça entre os homens.

A unificação dos três Poderes num só homem ou num só grupo tem um nome bem conhecido na teoria política, chama-se despotismo, como o denominava Montesquie­u.

Como dito antes, o desafio reside em criar um sistema eficaz para proteger a representa­ção política contra o assédio do poder econômico.

Ao escrever sobre o momento político na Itália, em 1994, Bobbio relata que “naquela época venceu uma direita moderada contra uma extrema esquerda – a Frente Popular. Hoje venceu uma direita extremista contra uma esquerda em que predominav­a uma ala moderada. A esquerda não sai humilhada e a direita sai vencedora, porém dividida. O centro não desaparece­u, resistiu. Trata-se de saber, indaga Bobbio, se é apenas o ramo seco de uma árvore velha ou a raiz de uma árvore nova.

PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS E DO CONSELHO SUPERIOR DE ESTUDOS AVANÇADOS (CONSEA/FIESP)

O desafio é proteger a representa­ção política do assédio do poder econômico

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