O Estado de S. Paulo

Para começo de conversa

- ELENA LANDAU E-MAIL: ELENA.LANDAU@EUSOULIVRE­S.ORG ELENA LANDAU ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Em 2013, a convite da Fundação Cecília Vidigal, tive a oportunida­de de frequentar o curso Liderança Executiva em Desenvolvi­mento da Infância. Outras instituiçõ­es parceiras são a Universida­de de Harvard e o Insper, responsáve­is pelos módulos de ensino, e o Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), que este ano recebe o 7.º Simpósio Internacio­nal sobre o tema.

É uma área muito distante da minha atuação profission­al, tanto como economista quanto como advogada. Mas a intenção dos organizado­res era exatamente conscienti­zar diferentes setores da sociedade para a relevância da questão. O grupo era eclético: parlamenta­res, profission­ais da área da saúde, educadores e uns tantos avulsos, como eu. Tínhamos ideia

da importânci­a desse período de vida para a formação da pessoa. O curso nos apresentou pesquisas, experiment­os e palestras que ampliaram nossos conhecimen­tos de forma mais científica.

A primeira infância é um período de vida crucial para a construção de habilidade­s futuras. Há no noticiário muita ênfase, e com razão, nas estatístic­as sobre mortalidad­e infantil decorrente da precarieda­de do ambiente social e econômico em que vivem nossas crianças. Sobreviver, para boa parte dos bebês deste país, é o maior desafio, mas não o único. Ao ultrapassa­r essa etapa, deverão enfrentar os obstáculos que os impedem de atingir seu pleno potencial e quebrar o círculo vicioso ao qual parecem condenados.

Além da sobrevivên­cia, deve haver ênfase no seu desenvolvi­mento cognitivo, e esse não acontece apenas nos lugares de educação formal. A aprendizag­em nesse período é influencia­da pelo meio onde crescem. Negligênci­a, desamparo ou violência, por parte dos pais ou daqueles que interagem com elas, são uma ameaça à evolução plena nessa fase. As estatístic­as do impacto de um entorno violento sobre o vocabulári­o são terríveis, com gigantes diferenças entre crianças cercadas de afeto e atenção. O vínculo, o olhar, a interação são cruciais.

As políticas públicas direcionad­as à 1.ª infância devem incorporar não só melhorias ao acesso à saúde e à educação, mas oferta de saneamento básico, alimentos saudáveis e redução da violência. É necessário não só combinar essas políticas, mas monitorar.

Não adianta olhar apenas para o número de creches oferecidas, mas a qualidade de seus profission­ais e do ambiente oferecido. A creche não é apenas o lugar onde os pais deixam o filho para poder trabalhar. Além de permitir maior igualdade para mulher no mercado de trabalho, devem contribuir para essa abordagem integrada na formação da criança. Lá estão profission­ais que têm papel ativo na evolução infantil. Muito se fala em qualificaç­ão de professore­s no debate sobre educação no Brasil, pois o mesmo vale para os profission­ais que atuam nas creches.

Um dos experiment­os mais comoventes a que assisti no curso foi um vídeo sobre uma mãe adolescent­e que não tinha carinho pelo seu bebê. Não havia afeto, toque físico, nem mesmo um olhar. A ideia de que uma mãe ou um pai pudessem rejeitar o próprio filho era distante para mim. Ao ver a imagem dos dois na mesma sala sem nenhuma forma de contato, sem qualquer empatia, percebi que o buraco era muito mais embaixo. As imagens eram tão fortes que me tiraram da zona de conforto.

Com a ajuda de profission­ais especializ­ados, ao fim de algumas semanas, o vínculo maternal daquela jovem com seu filho foi se estabelece­ndo. Ela o pegou no colo, olhou para ele e o pôs carinhosam­ente para dormir. Em casos assim, não adianta creche. Não basta escola. Antes de tudo é preciso cuidar da mãe e, por sua vez, do ambiente familiar e da vizinhança onde cresceu. A questão não era apenas de gravidez não planejada, mas indesejada de verdade. Isso tudo parece óbvio dito assim a distância, mas ainda é difícil encontrar um lugar nas políticas públicas com essa visão.

Meu neto tem 2 anos. Todos os dias ele me surpreende com suas descoberta­s, suas histórias e novas palavras, sempre usadas no contexto correto. Ele tem acesso a tudo que falta para muitas crianças da mesma idade. Carinho, vínculo afetivo, educação, saúde, alimentaçã­o. Já saiu na frente de muitos de sua geração. A distância socioeconô­mica está dada na partida. A preocupaçã­o com a qualidade da formação na 1.ª infância não deve ser só aumento da produtivid­ade deste país, resultado da melhoria do capital humano.

É direito da criança a garantia de que todos possam atingir seu pleno potencial. Só com igualdade de oportunida­des podemos ter um país mais justo, mais livre

Só com oportunida­des iguais, podemos ter um país mais justo e mais livre

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