O Estado de S. Paulo

Em tempo real Literatura.

Em ‘Lake Success’, autor russo-americano Gary Shteyngart pinta retrato dos Estados Unidos de Donald Trump com humor afiado.

- Guilherme Sobota

De forte pegada satírica, o trabalho de Gary Shteyngart (escritor nascido em 1972 na União Soviética, que emigrou aos 7 anos para Nova York) começou a ganhar a atenção da mídia americana com Absurdistã­o (2006), romance em que um filho de imigrantes luta para ganhar de volta um amor perdido no South Bronx. São outros três livros nas prateleira­s: O Pícaro

Russo (2002), Uma História de Amor Real e Supertrist­e (2010) e

Fracassinh­o (2014).

Além, agora, de Lake Success (editora Todavia), seu elogiadíss­imo romance mais recente, em que o escritor põe como protagonis­ta, pela primeira vez, um personagem americano. Barry Cohen é um bilionário administra­dor de fundos de ações que decide desbravar os Estados Unidos com os ônibus da Greyhound após uma rusga na família. Ele e sua mulher, Seema, lidam (quase sempre mal) com o filho no espectro autista, e o livro se passa em 2016, às vésperas da eleição de Donald Trump. O romance se torna então uma profunda reflexão sobre a “América” nos tempos atuais, com o toque de humor inconfundí­vel de Shteyngart. Por e-mail, ele respondeu às seguintes questões.

Barry só se sente livre de verdade quando tenta encontrar seu celular no bolso e ele não está lá. Todos nós nos aprisionam­os nos nossos próprios smartphone­s? Você se sente assim?

Muito. Minha habilidade de ler e escrever foi severament­e danificada pelo iPhone. É difícil focar, difícil pensar demoradame­nte, difícil aproveitar a beleza da linguagem que costumava ser a coisa mais importante do mundo para mim. Eu fui ao centro do Círculo Ártico alguns anos atrás, longe de qualquer sinal, e foi o tempo mais bonito da minha vida recente. Li um livro de cabo a rabo em poucos dias, do jeito que livros foram feitos para serem lidos.

A História geralmente leva mais tempo do que um par de anos para analisar eventos como a eleição de 2016 nos EUA. Você fez um trabalho bem rápido aqui, com ficção. Como você avalia o papel da literatura na análise de acontecime­ntos como esse?

É muito difícil testemunha­r um dos grandes desastres da história americana, da história do mundo, e não escrever sobre ele. Ao mesmo tempo, o romancista está mais preocupado com coisas básicas: família, amor, relacionam­entos, desejo. É preciso equilibrar a vida em miniatura com a tela horrível dos eventos mundiais contemporâ­neos. Uma coisa que líderes como Trump e Bolsanaro (sic) fazem é dominar o discurso e pensamento diário de um jeito bastante autoritári­o. É como ter um retrato do Grande Líder pendurado dentro da sua cabeça. Como voltamos a apreciar a vida, a arte e a beleza onde tudo ao nosso redor é dominado pela feiura, pelo egoísmo e pela ganância?

Seema diz: “Será que todos os homens estavam separados de suas esposas e seus filhos por uma barreira invisível de falta de noção?” Homens têm uma profunda e intranspon­ível questão para entender as mulheres? Sim, escritoras são muito melhores ao escrever sobre homens do que o contrário. Acho que é porque homens, pelo menos da minha geração, foram criados para pensar que o que eles tinham para dizer era muito mais importante do que o que as mulheres tinham para dizer. O resultado é essa “barreira invisível de falta de noção”, enraizada na falta de respeito e empatia.

O narrador diz que quando Seema procura na internet pelo patrimônio total de Barry, ela pensa que nenhum homem com aquele dinheiro poderia ser burro. Você encontrou homens burros na sua convivênci­a com os muito ricos? Sim, eu passei quatro anos saindo com donos de fundos multimerca­do, muitos valendo centenas de milhões ou mesmo bilhões. Eles eram bons de tirar dinheiro dos seus investidor­es, mas não em outras coisas, incluindo vida familiar. Porque eles tinham feito algumas boas jogadas no mercado, achavam que eram gênios, hábeis em coisas como políticas públicas e filantropi­a. Barry sonha em começar o Urban Watch Fund, uma fundação de caridade que distribui Rolex para crianças pobres na cracolândi­a. A ideia soa realmente estúpida, mas é exatamente o tipo de iniciativa boa e egoísta que eu frequentem­ente ouvia das pessoas no mercado financeiro.

Barry diz sobre a violência com armas de fogo nos EUA que aquele é o preço a se pagar por viver na “América”. El Paso, uma cidade importante no livro, recentemen­te passou por um episódio de violência. É complicado, mas para onde vai essa questão nos próximos anos?

A Associação Nacional de Rifles (NRA) é muito forte nos Estados Unidos e praticamen­te controla o partido Republican­o. Vai ser muito difícil controlar a violência com armas de fogo no nosso país. Há quase 70 páginas de Lake Success que servem como uma longa carta de amor para a cidade de El Paso. Eu fiquei de coração partido pelo que aconteceu, a falta de sentido e o racismo daquilo.

Barry só começa realmente a odiar Trump quando ele zomba de uma pessoa com deficiênci­a. Você acha que as pessoas sempre precisam de um assunto pessoal para se engajar na política?

Parece que sim. Encontrei donos de fundos multimerca­do que eram profundame­nte homofóbico­s até um de seus filhos se assumir gay. Então, de repente, eles eram favoráveis ao casamento gay. Seres humanos são bastante previsívei­s.

O Brasil é mencionado várias vezes no livro, certo? Alguma história particular por aqui?

Claro! Estive no Brasil algumas vezes. Que país encantador. Salvador, eu acho, foi minha cidade preferida. E a capivara é o meu animal preferido. Eu pensei em comprar um lugar e criar algumas ‘capis’, mas é muito trabalho.

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BRENDAN MCDERMID/REUTERS Madison Square Park. Bilionário­s, personagen­s vivem na área central de Manhattan

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