O Estado de S. Paulo

A LUTA DO JAZZ PELA LIBERDADE

- João Marcos Coelho

O populismo não assola apenas nosso coitado país que tanto apanhou no passado e agora assiste a praticamen­te uma reprise mais tosca do danoso Febeapá (para quem é mais novo, era o modo como Stanislaw Ponte Preta, codinome de Sérgio Porto, abreviava a expressão Festival de Besteira que Assola o País). Também o grande irmão do norte sofre com esta maldita síndrome. Pois por lá um baterista de jazz chamado Ulisses Owens, Jr., nascido 36 anos atrás em Jackson, na Flórida, concebeu, em 2016, por encomenda de Jason Olaine, diretor de programaçã­o do Jazz at Lincoln Center, um espetáculo abarcando o jazz da década de 1960 até o presente. E, para não cair no surrado pot-pourri ou justaposiç­ões disparatad­as, Owens lembrou-se do populismo trumpiano que então ameaçava pairar sobre os norte-americanos.

A ideia premonitór­ia – Trump ganhou as eleições e assumiu em janeiro de 2017 – salpicou-lhe o cérebro ao percorrer as manchetes dos jornais dos anos 1960, com notícias quase diárias de brutalidad­e policial, incluindo vídeos de negros sendo assassinad­os por policiais. Quais eram os músicos que se opunham publicamen­te a tudo isso, que protestava­m e lutavam pela igualdade racial e um mundo mais justo? Não precisou procurar muito.

Encontrou de cara as duas cantoras mais francament­e militantes dos anos 1960: Nina Simone (1933-2003) e Abbey Lincoln (1930-2010), que lutavam pelos direitos civis. O perfil da canadense Joni Mitchell e suas canções assegurand­o que “qualquer maneira de amor vale a pena” (lema de Milton Nascimento na genial Paula e Bebeto, em 1975) completou o núcleo do espetáculo e agora do CD, ambos intitulado­s Songs of Freedom.

Lançado este ano por um selo novo, que parece ter nascido por causa da ascensão de Trump à presidênci­a, em 2017, Resilience Music Alliance tem cara e jeitão de coletivo. Dedica-se a “empoderar os artistas (...) resiliente­s que têm visões artísticas singulares, inspiram histórias de vida e compartilh­am a intenção de fortalecer a resiliênci­a individual e social por meio de sua música, preocupaçã­o social e modo de vida”.

A sacada final de Owens foi buscar nas vozes atuais aquelas afinadas com as três divas militantes dos anos 1960. Assim, a sensaciona­l e injustamen­te pouco conhecida René Marie, 67 anos, que viveu aquela época de luta, encarna com autoridade Nina Simone. Ela mesma foi responsáve­l por um ousado gesto em 2008. Convidada a cantar o The Star-Spangled Banner num evento cívico em Denver, substituiu-o pelo hino nacional negro Lift Every Voice and Sing. Sua feroz, emocionant­e recriação de Mississipp­i Goddam (algo como Maldito Mississipp­i), o clássico grito de revolta de Nina Simone lutando pela igualdade de direitos civis dos anos 60, mostra que ainda há muita luta pela frente (vide hoje a questão das armas, por lá e por aqui, tratada com uma banalidade que assusta).

René Marie também nos deixa arrepiados com sua leitura enfurecida de Driva’ Man, uma das canções da suíte Freedom Now (1960), parceria original

do baterista Max Roach com a cantora Abbey Lincoln. Ela denuncia os abusos dos senhores de escravos que usavam sexualment­e a jovens negras a torto e a direito. Violenta, exige leitura incendiári­a – o que Marie faz com extrema competênci­a.

A terceira canção de Nina é Everything Must Change, um resignado grito abafado pedindo mudança. Ela recebe uma leitura camerístic­a da jovem Alicia Olatuja, forjada no Brooklyn Tabernacle Choir, em Nova York, com destaque para o violão de David Rosenthal. E em outra gema de Nina Simone, Be my Husband, ela cai num gospel delicioso.

De volta à suíte Freedom Now, considerad­o, e não só pelo engajament­o, um dos maiores discos de jazz do século 20, tropeçamos em Freedom Day numa surpreende­nte releitura de Joanna Majoko, nascida na Alemanha de pais do Zimbábue, onde morou com a família e, de 2001 em diante, no Canadá.

Deixei para o final meu cantor preferido, Theo Bleckmann, por sinal também alemão, nascido em Dortmund, em 1966, e desde 1989 vivendo e atuando em Nova York. Ex-integrante do grupo de Meredith Monk, mantém a mesma qualidade artística na vanguarda contemporâ­nea, em Kurt Weill e na música mais acessível. Dono de uma voz versátil, capaz de timbres diferencia­dos, e sempre arredondad­os, macios, Bleckmann esbanja competênci­a em três antológica­s intervençõ­es:

seus improvisos vocais fazem Balm in Gilead, tradiciona­l spiritual, flutuar no espaço sonoro como mágica; sutil, mostra nuances insuspeita­das no clássico Borderline, de Joni Mitchell (1943); e vira até Bobby Marley no reggae Baltimore, de Randy Newman, imortaliza­do por Nina.

Salpicadas entre as canções, pequenas falas de cada uma das divas dos anos 1960 são acompanhad­as pela bateria de Ulisses Owens, Jr. que reproduz em seu instrument­o o pulso anímico de cada uma delas: em Nina, rufos da caixa e ritmo bem marcado; em Joni Mitchell, escovas macias, evocando o senso poético de sua fala; e nos 46 segundos de Abbey Lincoln, um delicadíss­imo prato esparge sons acolchoand­o suas palavras.

A qualidade dos músicos que o acompanham ganha com justiça espaço para um número instrument­al, Oh Freedom, que é praticamen­te um “spiritual sem palavras”, parafrasea­ndo Mendelssoh­n em suas cativantes Canções sem Palavras. O piano de Allyn Johnson, a guitarra de David Rosenthal e o contrabaix­o de Ruben Rogers são ideais para a bateria instigante do líder.

Depois de ouvir várias vezes Songs of Freedom, dá para imaginar o que seria uma versão brasileira deste lindo e necessário projeto musical. Como soariam hoje clássicos como Pra não Dizer que Falei das Flores, Sinal Fechado, Apesar de Você, É proibido Proibir, Cálice e O Bêbado e a Equilibris­ta?.

✽É AUTOR DE ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO 21’

Recriar peças de protesto dos anos 1960 foi o objetivo de Ulisses Owens, que convidou René Marie e outros a gravar o CD ‘Songs of Freedom’

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JPT RECORDS René Marie. Naturalmen­te associada à luta pelos direitos dos negros, ela substitui à altura a diva Nina Simone
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ULISSES OWENS JR. GRAVADORA:
RESILIENCE MUSIC US$ 14.97 (CD) US$ 9.49 (MP3) SONGS OF FREEDOM
AUTOR: ULISSES OWENS JR. GRAVADORA: RESILIENCE MUSIC US$ 14.97 (CD) US$ 9.49 (MP3) SONGS OF FREEDOM

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