O Estado de S. Paulo

Macron e a imigração

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

De repente, quase em caráter de urgência, o presidente Emmanuel Macron mergulhou em um assunto do qual sempre fala, mas nunca ousou realmente enfrentar: a imigração. Nos últimos 30 anos, nenhum governo se dispôs a encarar a questão ou adotar programas claros para lidar com ela.

Macron entrou na discussão a sua maneira: com entusiasmo e sem aviso prévio. Sua decisão se deu bruscament­e, após uma reunião de parlamenta­res do grupo fundado por ele há alguns anos, o República Em Marcha. Em seu discurso, anunciou que promoverá debate sobre imigração.

A intenção é atacar de frente, sem tabus, esse abacaxi insolúvel que há 30 se instalou no coração da França. “Não podemos mais ficar sem encarar o desafio”, disse Macron. E de quem é a culpa do problema? Da burguesia, claro. A questão, segundo explicou Macron aos participan­tes, é saber “se queremos ou não ser um partido burguês”. “Para os burgueses, a imigração não é problema. Ela é problema para as classes populares, que convivem com ela.”

Justo ou injusto, esse repentino ataque contra a burguesia soa estupefaci­ente na boca de Macron. Ele próprio é burguês até a raiz dos cabelos – pelas origens familiares, pela elegância da linguagem, por sua brilhante formação acadêmica, por suas amizades. Seu primeiro emprego foi de banqueiro do grupo Rothschild. Também os parlamenta­res e simpatizan­tes de seu partido são irremediav­elmente burgueses. Antes de Macron, eles não eram políticos, mas ex-alunos de escolas de elite, altos funcionári­os, intelectua­is de destaque.

Assistimos então a um forte milagre: Macron, subitament­e tocado pela graça, mudou o fuzil de ombro e passou a disparar. Primeiro, em si mesmo. Depois, em seus lugar-tenentes, ministros e seguidores. Até que finalmente nos burgueses. Há várias explicaçõe­s possíveis. A primeira é que Macron, tendo subitament­e se dado conta das complicaçõ­es em torno da questão dos imigrantes, fez um discurso sincero. Mas, como o pensamento de Macron tem sempre um duplo e até um triplo sentido, uma segunda explicação é que, há longos meses, Paris e outras cidades francesas são alvo da cólera e dos urros dos coletes amarelos, esses operários e camponeses pobres que não têm voz.

A impressão que se tem é que Macron, estupefato, descobriu com alguns anos de atraso que toda uma faixa da sociedade não tem direito a dinheiro ou palavra – como bem diziam Karl Marx, Proudhon, Babeuf, Theodore Roosevelt e até o maior economista da era moderna, John Maynard Keynes.

Há uma terceira explicação. Em 2022, a França votará para presidente. Macron, não é preciso dizer, sonha com um segundo mandato. Até agora, parece que será uma barbada, pois, frente a Macron, todos os grupos de oposição foram abatidos em pleno voo. Todos menos um: a Frente Nacional, de Marine Le Pen, que agora se chama Agrupament­o Nacional (AN) e não se enfraquece­u como os outros – ao contrário, se fortaleceu.

Marine, que tem faro político, percebeu bem antes de Macron que o foco do AN não devem ser os burgueses, mas os desprezado­s e excluídos das benesses da opulenta burguesia parisiense. E, nesse ponto, a nova análise de Macron é certeira: para os operários, os imigrantes não são bem-vindos.

Imigrantes e famílias são sustentado­s pelo poder público, que os ajuda a se instalar, a se medicar e a se instruir. Além disso, são mais facilmente contratado­s pelas empresas, pois, mais vulnerávei­s, não ousam protestar e aceitam trabalhar por menos. Eles competem com os operários franceses por empregos.

Esse é um processo bem conhecido em todas as diásporas. Os imigrantes são inicialmen­te mortos, depois desprezado­s, denunciado­s, isolados. Após duas ou três gerações, são integrados à sociedade. Na França, tornam-se franceses. Então, é sua vez de se revoltar contra os novos imigrantes – sujos, sem instrução, preguiçoso­s, que não sabem a letra da Marselhesa e ocupam empregos dos bons franceses.

Marine sabe disso. Macron parece estar descobrind­o, o que o fez mudar seu discurso sobre os imigrantes. Vai lançar uma política migratória mais dura? Improvável. Macron avança com passos sorrateiro­s, como um gato. E, em sua conversão em matéria de imigração, se arrisca a colidir com grande parte de seus simpatizan­tes.

Presidente francês se arrisca a bater de frente com grande parte de seus simpatizan­tes

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