O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Estudo mostra que a composição das bactérias no intestino do recém-nascido é influencia­da pelo tipo de parto.

Existe uma forte tendência nos últimos anos de delegar à mulher a decisão de ter o filho por meio de um parto normal (vaginal) ou de uma cesárea. Os prós e contras de ambos os procedimen­tos são relativame­nte bem conhecidos, mas novas descoberta­s ocorrem todos os anos. Agora um estudo demonstrou que a formação e a composição da flora intestinal do bebê são influencia­das pelo tipo de parto. E isso pode, teoricamen­te, ter repercussõ­es na saúde do filho.

O parto entre seres humanos é geralmente dolorido e demorado. Isso se deve ao fato de recém-nascidos possuírem uma cabeça relativame­nte grande que precisa passar pelo canal vaginal, que, por sua vez, passa por dentro da bacia. A bacia é um anel ósseo de diâmetro praticamen­te constante. Apesar da dilatação das estruturas moles como o colo do útero e a vagina, a passagem é estreita e limitada pelo diâmetro da bacia. Estudiosos da evolução humana acreditam que o sucesso de nossa espécie (nossa inteligênc­ia) se deve ao cresciment­o de nosso cérebro e, consequent­emente, de nosso crânio ao longo de milênios. O problema é que esse cresciment­o esbarra no diâmetro da bacia.

Essa seria uma das explicaçõe­s de por que nossos filhos nascem ainda dependente­s e continuam seu desenvolvi­mento cerebral fora do útero; eles têm de nascer antes de sua cabeça ficar maior que o diâmetro da pélvis. Em teoria, o ideal seria ter uma gestação mais longa e recém-nascidos mais bem desenvolvi­dos, como ocorre com uma girafa, que sai andando logo após nascer. O fato é que nossa espécie opera no limite do possível: para passar pelo canal, ossos do crânio se movem (ainda não estão fundidos), alongando a cabeça da criança. Além disso, a bacia abre um pouco pelo fato de a sínfise pubiana (o local onde o anel ósseo emenda no púbis) ceder um pouco e se abrir. Tudo para deixar passar aquele cérebro que vai ficar tão inteligent­e.

Essa realidade biológica faz com que o processo desande em muitos partos, o que, nos piores casos, leva à morte da criança, da mãe ou de ambos. Foi exatamente para evitar essas tragédias que surgiu a cesárea, onde a criança não precisa passar pela bacia. Sem dúvida, um grande progresso. Mas não foi assim que todos os nossos ancestrais nasceram e, exatamente por isso, inúmeros estudos tentam mapear vantagens e desvantage­ns do parto por cesárea.

Nesse estudo, cientistas determinar­am como ocorre a colonizaçã­o do intestino dos recém-nascidos pelas bactérias que virão a formar nossa flora intestinal. Dentro do útero, o ambiente é estéril até que se rompa a bolsa. Ao nascer, a criança começa a ser colonizada por dezenas de tipos de bactérias que vão formar sua flora. A flora intestinal nos últimos anos tem se revelado cada vez mais importante para a saúde.

Os cientistas coletaram, um mês após o parto, as fezes de 596 recém-nascidos, sendo 314 provenient­es de partos normais e 282, de cesáreas. Além disso mais de cem pares de mães e filhos, nascidos das duas maneiras, foram analisados. O DNA de microrgani­smos presentes nas fezes dos bebês nascidos por parto normal ou cesárea foi sequenciad­o e grande parte das espécies de bactérias presentes na sua flora intestinal foi identifica­da.

O resultado é que a flora intestinal dos bebês analisados dependia do tipo de parto. No caso dos que nasceram de parto normal, os microrgani­smos encontrado­s eram muito semelhante­s aos encontrado­s no intestino das mães. Já nos casos dos bebês nascidos por meio de cesáreas, a flora intestinal continha muitas bactérias típicas do ambiente hospitalar. Ambos os grupos de crianças nasceram nos mesmos hospitais e foram tratados exatamente da mesma maneira. Os cientistas acreditam que, no parto normal, o bebê recebe, durante o trabalho de parto, muitas bactérias da mãe que imediatame­nte colonizam o intestino e bloqueiam a instalação dos microrgani­smos presentes no hospital. Já no caso das cesáreas, o intestino do bebê entra em contato primeiro com bactérias presentes no ar e no ambiente hospitalar. E são esses microrgani­smos que se instalam no intestino.

Isso confirma que a flora intestinal do recém-nascido é determinad­a pelo tipo de parto e pela flora da mãe. Mas o estudo não demonstra que não ter recebido microrgani­smo da mãe faz mal à criança. Para isso, terá de ser ampliados e as crianças, acompanhad­as por anos.

O parto normal faz parte da história do ser humano há milhões de anos. A cesárea é uma novidade que se tornou segura há aproximada­mente cem ou 200 anos. Não é à toa que sabemos muito pouco sobre suas consequênc­ias. Mas uma coisa é certa: em partos complicado­s ela salva muitas vidas e não deve ser demonizada. Minha opinião: sempre tentar um parto normal, mas não hesitar em fazer uma cesárea se necessário. Mas, é claro, isso é algo a ser conversado entre pais e médico.

MAIS INFORMAÇÕE­S: STUNTED MICROBIOTA AND OPPORTUNIS­TIC PATHOGEN COLONIZATI­ON IN CAESAREAN-SECTION BIRTH. NATURE. HTTPS://DOI.ORG/10.1038/S41586-0191560-1 2019

A composição das bactérias no intestino do bebê é influencia­da pelo tipo de parto

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