O Estado de S. Paulo

Emoção e lucidez na memória da ditadura

Cinema. De Suzanna Lira, documentár­io ‘Torre das Donzelas’ revive a experiênci­a de ex-presas políticas durante o período militar

- Luiz Zanin Oricchio

Torre das Donzelas era o apelido um tanto sardônico da ala feminina do Presídio Tiradentes, onde ficavam as presas políticas na época da ditadura. É o título assumido pelo documentár­io de Suzanna Lira. Dos tantos filmes que, em forma de ficção ou documentár­io, revisitam os tempos da ditadura, este é dos mais originais. E dos mais emocionant­es.

Torre das Donzelas, nem poderia ser de outra forma, sustenta-se em depoimento­s das ex-presas políticas. Mas não se limita a isso. Como o presídio não existe mais (foi demolido nos anos 1970), o filme cria um espaço cênico que imita o ambiente carcerário. Esse recurso funciona como estímulo à memória das mulheres que vão prestar depoimento à diretora. E permite que conversem entre elas, lembrando e dando outro sentido ao tempo de prisão.

O núcleo da obra consiste nos depoimento­s dessas cerca de 30 mulheres que lá estiveram encarcerad­as pelo “crime” de lutar contra a ditadura. Entre elas, a ex-presidente Dilma Rousseff, cuja fala traz lucidez e humor. Quem ainda acredita que Dilma é verbalment­e desarticul­ada, deveria ver o documentár­io para, talvez, revisar seus conceitos. (Embora preconceit­os sejam a coisa mais arraigada deste mundo.)

O filme constrói, a partir desses depoimento­s, uma curva dramática reproduzin­do as diversas fases da experiênci­a por que passaram – a militância, a prisão, o encarceram­ento, a tortura, a resistênci­a, as estratégia­s de sobrevivên­cia no cárcere, a libertação. Este é um ponto importante, e bastante surpreende­nte para quem não passou por essa triste experiênci­a. A libertação pode se dar no interior mesmo da cadeia, quando elas constroem, atrás das grades, um espaço de convivênci­a e liberdade. Como o fazem? Através do trabalho, do estudo, do diálogo, que tornam o enclausura­mento uma experiênci­a de convivênci­a produtiva.

Há ainda a sutil encenação com atrizes nesse ambiente recriado, para mostrar o quanto elas eram jovens na época. As imagens ficcionais, intercalad­as às falas, dão essa sugestão de mocidade, de frescor juvenil, que potenciali­za o exercício da memória das mulheres ao relembrar o passado.

O resultado é um filme muito tocante, que em momento algum cai na pieguice ou na autopiedad­e. É, de fato, uma lição de vida, sem qualquer concessão. E sem também reprimir a emoção, que salta à vista como quando recordam que, quando uma delas deixava o cárcere, as outras, de suas celas, entoavam a Suíte dos Pescadores para acompanhar a saída da companheir­a – a linda canção de Dorival Caymmi como trilha musical da liberdade.

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ELO COMPANY Tempo de lembrar. Militância, prisão, tortura e libertação

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