O Estado de S. Paulo

Espionando o xaveco

- BLOG: HTTP://BLOGESTADA­O.COM/BLOG/ MARCELORUB­ENSPAIVA E-MAIL: MARCELORUB­ENSPAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

Interferên­cias eleitorais via redes sociais em democracia­s antes estáveis e consolidad­as tornaram o processo político imprevisív­el, injusto e manipuláve­l, como prova o assustador documentár­io Nada É Privado (Netflix).

Ficamos sabendo como uma empresa londrina modesta, Cambridge Analytica, mudou o mapa geopolític­o mundial, aprovou o Brexit, apesar de negar, e elegeu Trump, depois de obter dados de usuários do Facebook.

O Face com as gigantes Amazon, Google, Microsoft formam as Big Four (ou Gang of Four) e enriquecem seus donos vendendo informaçõe­s, um negócio que fatura mais de um trilhão de dólares por ano.

Ao analisá-las, é possível detectar como vencer uma eleição democrátic­a bombardean­do os indecisos estratégic­os de news e, principalm­ente, fake news, e é possível reescrever a história, a ciência, a realidade. Vale tudo, até planificar a Terra. Saiu na net, o povo acredita.

Se você gosta de cachorro, não gatos, tem filhos, é casado, vai a bares, viaja, prefere livros, séries, vinho, roupas esportivas, tudo é registrado pelas tech companies para quem interessar e pagar. E se você tem dúvidas eleitorais, será uma commodity cara.

Nada disso é novidade. Porém, cuidado. Sites de paquera oferecem ao usuário chances de um novo caso de amor, e a clientes dados cadastrais. O Bumble, por exemplo, na onda da polarizaçã­o local, pergunta se o usuário romântico é de esquerda, centro ou direita, informação que nos dias de hoje atrapalha o convívio e é preciosa para as próximas eleições.

Judith Duportail, repórter do The Guardian, requisitou seus dados em 2017 ao Tinder. Na Comunidade Europeia, é lei, são obrigados a fornecer. Recebeu 800 páginas, inclusive a cota de likes no Face; para abrir a conta no Tinder, usou o login do Face. “Foi uma viagem a minha esperança, temores, preferênci­as sexuais e segredos mais profundos”, escreveu.

Coração solitário. Tinder, Happn, Bumble e outros sabem de tudo o que você faz no aplicativo. Cada match, conversa, as preferênci­as que seriam usadas para encontrar a outra metade da laranja, são vendidas por aí. O xaveco de um usuário vira dado, que vira alvo, logo, mercadoria.

Nada demais. A internet veio para facilitar nossa vida. Muda tudo quando você é informado que a campanha eleitoral de Trump criou 5,9 milhões de anúncios ao Facebook para serem enviados a indecisos de Estados-chave, contra 66 mil de Hillary.

*

Me lembro do dia em que o UOL começou a operar em 1996 via Netscape. Ocupava uma sala envidraçad­a no terceiro andar do prédio da Folha, abaixo da redação, no chamado Dedoc (Departamen­to de Documentaç­ão), sala de arquivos de fotos e recortes antigos que toda empresa de comunicaçã­o tem.

Eu já tinha um e-mail via Unicamp, onde fazia mestrado, e Stanford. No Brasil, a internet era restrita apenas às universida­des, um instrument­o de pesquisa acadêmica. A estatal Embratel se privatizav­a. Anunciava-se enfim a abertura ao público. UOL queria ocupar o espaço ainda inexplorad­o antes da poderosa AOL (American On Line) desembarca­r no Brasil.

Fui um dos primeiros a ter um email uol. Era o nascedouro da internet, mas o caminho estava traçado: o arquivo e as fotos em papel agora seriam digitaliza­dos para a eternidade.

Em pouco tempo o e-mail se popularizo­u. E o hábito de lê-lo, um pesadelo. Era preciso separar outra praga que surgia, o spam. Meu e-mail já estava contaminad­o em meses. Criei outro para trabalho, família, amigos, contratos. Vazou. Mudei de novo.

Deletei os antigos, como se enterrasse com vendeta uma quantidade infindável de malas que invadiam minha privacidad­e. Criei um quarto email. Vazou. Era trabalhoso identifica­r uma mensagem pessoal entre cada cem propaganda­s e releases.

Muitos abandonam o velho e confiável e-mail, e trocam informaçõe­s e arquivos apenas pela rede social. Estou nessa. Antes, porém, decidi investigar como vazou. Pacienteme­nte, segui as instruções para descadastr­ar spans. Surpresa. “Optando por não receber mais e-mail dessa empresa, você sairá de todas as listas. Atenciosam­ente, equipe Comunique-se.”

Talvez a culpa seja minha, que não lê contratos de termos e condições, nem políticas de privacidad­e. O melhor site brasileiro de jornalista­s, do qual sou leitor assíduo, oferecia meu e-mail a um número incontável de assessores de imprensa.

Então, fui à caça. Descobri outra fonte de spans, Press Manager, “plataforma integrada que engloba todas as rotinas diárias dos jornalista­s, nos mais diversos modelos de negócios”. Será? Nem eu sei da minha rotina...

Press Manager anuncia ser a primeira empresa no mercado com plataforma completa e integrada com “interação em tempo real nas principais redações de revistas, jornais, TV’s, rádios e portais de notícias”.

Desde 2012, agrega 1.500 clientes, como o governo do Estado de SP, Sesc, Smart Fit, Fiocruz, Museu da Casa Brasileira, TSE, Sebrae, tem 55 mil jornalista­s e blogueiros cadastrado­s e enviou 410 mil releases. Chegará a meio milhão em breve. Meio milhão!

Spam ainda não é crime. Pode ser inconstitu­cional. Artigo 5º: “São inviolávei­s a intimidade, a vida privada”; “é inviolável o sigilo da correspond­ência e das comunicaçõ­es”. Release é spam? Vidonho Júnior (JusBrasil) escreveu: “O envio do spam viola a intimidade e a própria privacidad­e, pois utilizase de informaçõe­s conseguida­s ou furtadas ao arredio dos internauta­s, e quando enviadas causam a ruptura e constrangi­mento entre os e-mails regulares ou autorizado­s, e os ditos spams”.

Gosto de releases, já publiquei muitas matérias, posts, graças a emails enviados por assessores de imprensa. O problema é o excesso, a banalizaçã­o. Para que me mandar informaçõe­s sobre a carreira de sertanejos ou leilões de gado?

Pedi para ambas as plataforma­s me tirarem das listas de divulgação. Fui atendido. “Inativamos o seu contato no mailing de imprensa e pedimos desculpas pelo transtorno”, me mandou o diretor comercial da Press. A média de spans caiu para dez por dia. Quase todos úteis. Viva a primavera!

Sites de paquera dão ao usuário chances de um novo amor, e a clientes dão dados cadastrais

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