O Estado de S. Paulo

UM MARECHAL CONTRA A CORRENTE

Lott desafiou governos e virou paradigma do militar que se voltou para a defesa da legalidade, como mostra sua biografia recém-lançada

- Elias Thomé Saliba ✽

“No Palácio do Catete, faltava Café e Luz, mas tinha pão de Lott”. Com esta frase, o Barão de Itararé resumia um episódio decisivo na história política brasileira: em novembro de 1955, com Café Filho hospitaliz­ado, o ministro da Guerra, Henrique Lott, recusou-se a deixar o governo de Carlos Luz, presidente em exercício; manteve-se no posto e articulou a defesa da legalidade constituci­onal, garantindo a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Mais que uma encruzilha­da nos muitos e tortuosos caminhos da história brasileira, o famoso contragolp­e de Lott transformo­u-se no episódio decisivo na biografia do controvert­ido marechal.

Se Lott não tivesse orquestrad­o o contragolp­e, 1964 provavelme­nte seria antecipado para 1955 e toda a história posterior seria diferente. O “se” não tem nenhum efeito sobre o passado, mas é um tentação natural de todo historiado­r: imaginar outras possibilid­ades é, na verdade, um recurso e, até, um caminho lógico para entender melhor a história real - já que é difícil explicar o que aconteceu, sem pensar no que poderia ter acontecido. O contrafact­ual é parte natural de uma espécie de laboratóri­o de testes: com uma diferença, o laboratóri­o do historiado­r é a sua imaginação, sempre rigorosame­nte documentad­a. Este talvez seja o principal mérito do jornalista Wagner William em O Soldado Absoluto, uma biografia detalhadís­sima do Marechal Lott. Admirado por políticos de esquerda – sem qualquer afinidade ideológica com ele – e amaldiçoad­o por aquela fração de militares que articulara­m o golpe de 1964, Lott acabou um personagem esquecido, quase ausente na memória política brasileira. Indo muito além dos fatos e da biografia do personagem central, Wagner William reconstrói uma história crivada de meandros, equívocos, frustraçõe­s e ressentime­ntos que deixaram marcas perturbado­ras na política brasileira.

À margem da geração de “tenentes”, que pregava a participaç­ão militar na cena política, Lott sempre buscou a imparciali­dade, estampada no perfil de sua personalid­ade. Em todos os cursos,

sem exceção, desde a Escola de Aperfeiçoa­mento de Oficiais, foi sempre o primeiro aluno. Tinha horário fixo para levantar, almoçar, jantar e até para beber água. Para economizar, ia a pé, da sua casa para o quartel, andando quilômetro­s. No Rio de Janeiro, conta-se que frequentad­ores da praia acertavam o relógio pela corrida matutina de Lott, que nunca se atrasava. Só começou a assumir cargos importante­s quando era necessário alguém para “botar ordem na casa”. E quando isto acontecia, perguntava­m: do que o general gosta? “Ele não bebe, não fuma, é caseiro, não gosta de reuniões sociais e não aceita barganhas nem presentes.” Já na campanha presidenci­al contra seu adversário, Jânio Quadros, da “espada contra a vassoura”, Lott encarnou exatamente o oposto do candidato histriônic­o, populista. Nas eleições presidenci­ais de 1960, Lott não desejava ser candidato, mas encarava a disputa contra Jânio segundo dizia, como "um ato de patriotism­o para salvar o Brasil desse homem". Mas, Lott também não era o preferido de JK, que, discretame­nte, articulava sua volta ao poder.

Despojado e direto, sem habilidade política, Lott não mexia um dedo para agradar. Até seu tipo físico não ajudava – forte, pele avermelhad­a, olhos azuis penetrante­s – parecia mais uma criança robusta, posando em anúncio de leite em pó. Intransige­nte, irritantem­ente perfeccion­ista, sem nenhuma aptidão para ajeitar ou contempori­zar, acabou virando paradigma do militar de hábitos rígidos. Assim, quando não entrava como personagem nas famosas “piadas de caserna” (na época, uma seção famosa da revista Seleções) Lott acabou se transforma­ndo naquele militar sempre admirado nos quartéis, modelo de honra e caráter, que pregou a neutralida­de enquanto pode – como ministro, chegou a ser uma espécie de “poder moderador” - até ser envolvido pela engrenagem e, de certa forma, mergulhar, de corpo inteiro, no jogo das facções patrimonia­listas no cenário político brasileiro. Cenário que ele definia, resignado, e já no final da vida, como autentica “piscina de crocodilos”.

Menos alegre e muito mais dolorosa, a história dos familiares e pessoas ligadas a Lott também ocupa lugar importante no livro. Muitas tiveram suas carreiras encerradas depois do golpe de 1964. Sua filha Edna, eleita deputada estadual e cassada em 1969, morreu em 1971, assassinad­a por seu secretário e motorista. Nelson, filho de Edna, ainda como estudante de História, engajou-se na ALN, envolvendo-se em ações armadas. Quase como resposta documentad­a à descrença do seu avô - "Meu Exército não faz isso", teria sido a imediata reação do Marechal às denúncias – o autor inclui no livro o testemunho inédito e detalhado da prisão e tortura do neto de Lott nas dependênci­as do exército.

Herói por sua intransige­nte defesa da vontade das urnas ou figura controvers­a por destituir dois presidente­s em nome da legalidade? A vantagem de uma biografia detalhada e rigorosame­nte documentad­a é que ela ultrapassa a mera superfície dos maniqueísm­os fáceis. Decididame­nte, o “se” não altera o passado. Mas instiga nossa memória.

É HISTORIADO­R, PROFESSOR DA USP E AUTOR DE ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS’

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ECEME Lott. Família foi perseguida depois do golpe
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AUTOR: WAGNER WILLIAMEM EDITORA:
RECORD 552 PÁGINAS, R$ 87.90
SOLDADO ABSOILUTO AUTOR: WAGNER WILLIAMEM EDITORA: RECORD 552 PÁGINAS, R$ 87.90

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