O Estado de S. Paulo

Solavanco democrátic­o

- E-MAIL: MNaim@ceip.org / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É COLUNISTA

Oque Espanha, Itália, Israel e Reino Unido têm em comum? A incapacida­de de formar governos estáveis e capazes de governar. E esses são quatro países que, apesar de tudo, têm regimes nos quais ainda se respeita a divisão de poderes e se limita o poder do Executivo. Como sabemos, o que não faltam são países nos quais a disfuncion­alidade política é muito mais grave.

No mundo todo, governar está ficando mais difícil. Em alguns casos, impossível. Vemos que as eleições não funcionam mais como a âncora que estabiliza a política e possibilit­a aos governos... que governem. Mais do que isso: eleições e referendos agora revelam a profunda polarizaçã­o do eleitorado, paralisam o jogo político e tornam impossível a tomada de decisões. Assim, os resultados eleitorais formalizam e quantifica­m a profunda fissura da sociedade e, em alguns casos, contribuem para dificultar a convivênci­a civilizada entre as facções. A resposta que se dá a esses problemas é convocar novas eleições. Mas governar não está dificultan­do apenas a vida das democracia­s. Tampouco parece normal que Xi Jinping e Vladimir Putin, dois dos homens mais poderosos do mundo, estejam preocupado­s com manifestaç­ões de rua protagoniz­adas principalm­ente por jovens desarmados. Xi e Putin exercem um controle férreo sobre seus países, e os que protestam nas ruas de Hong Kong e Moscou não são uma ameaça para a sobrevivên­cia de seus regimes. O que surpreende é Xi e Putin não terem acabado antes com os protestos. Talvez a relativa tolerância que esses autocratas vêm mostrando com as manifestaç­ões seja um sintoma de quão seguros eles se sentem e da irrelevânc­ia dos protestos. Ou talvez não saibam como combatê-los.

Os protestos não têm líderes óbvios e hierarquia­s claras. A organizaçã­o, coordenaçã­o e participaç­ão neles depende das redes sociais. Em Hong Kong, líderes do governo próPequim se queixam de que, ainda que queiram fazer acordos com os manifestan­tes, não sabem com quem negociar. Obviamente, Xi e Putin poderiam acabar com os protestos usando os instrument­os normais das ditaduras: sangue e fogo. Mas o uso da força sempre implica riscos e pode fazer com que, em vez de sufocar os protestos, venha a agravá-los, convertend­oos em ameaças políticas mais graves.

Isso aconteceu, por exemplo, na Síria, onde as manifestaç­ões na cidade de Daraa contra a detenção e tortura de 15 estudantes que grafitavam contra o governo ganharam força até se transforma­rem em uma guerra civil que já dura oito anos e cobrou mais de meio milhão de vidas.

Mas, se o que está ocorrendo na política mundial não é normal, o que vem ocorrendo com o meio ambiente é ainda menos. Os fatos são conhecidos. Imagens de todas as partes do planeta mostrando as catástrofe­s produzidas por incêndios, chuvas torrenciai­s, secas prolongada­s e furacões são cotidianas. As evidências científica­s são esmagadora­s e a inação para fazer frente a essas ameaças é ainda mais. A paralisia ante enfrentar com eficácia as mudanças climáticas constitui sem dúvida o maior perigo que nossa civilizaçã­o vive.

A inépcia dos governos em responder à emergência climática é exacerbada pela influência de interesses econômicos. A ExxonMobil e os irmãos Charles e David Koch são apenas dois exemplos de empresas e indivíduos ricos que, durante décadas, financiara­m fartamente “centros de pesquisa” e “cientistas” dedicados a semear dúvidas sobre a gravidade do problema climático e impedir que governos adotem as políticas necessária­s.

O fato de grandes empresas influírem sobre governos para evitar que tomem decisões contra seus ganhos não é novidade. De fato, é o normal.

O que não é normal é líderes de algumas das maiores empresas do mundo repudiarem publicamen­te a ideia de que seu objetivo primordial seja maximizar os lucros. Foi, no entanto, o que ocorreu há algumas semanas, quando os chefes de 181 das maiores empresas americanas assinaram um comunicado que sustenta exatamente esse repúdio.

Esses altos executivos afirmam que as empresas privadas devem conciliar os interesses de seus acionistas com os de clientes, empregados, fornecedor­es e comunidade­s nas quais operam.

Obviamente, esses titãs do capitalism­o estão chegando atrasados ao diálogo. Para muita gente, já é evidente que ficou insustentá­vel para qualquer empresa ignorar os interesses e necessidad­es dos grupos dos quais dependem para satisfazer apenas aos acionistas. O debate agora é sobre como fazer isso, e, principalm­ente, garantir que as empresas cumpram o que prometem. Alguns importante­s líderes empresaria­is têm ideias a respeito. Brad Smith, presidente da Microsoft, por exemplo, publicou um artigo na revista The Atlantic intitulado “As empresas tecnológic­as precisam de mais regulament­ação”.

Isso não é normal. Sem dúvida, surpreende que o presidente da 16.ª maior empresa do mundo exorte os governos a regulament­arem suas indústrias. Mas essa, como as outras anomalias que acabamos de discutir, tiradas do noticiário recente, é apenas mais um exemplo de quanto é difícil decifrar o mundo no qual nos coube viver.

Empresas já não podem ignorar interesses dos grupos dos quais dependem

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STEFAN ROUSSEAU/ AP Reino Unido. Boris Johnson, um dos líderes com governo travado
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