O Estado de S. Paulo

‘A Lava Jato misturou celeridade com pressa’

Presidente do IDDD vê ‘decisões mal tomadas’ e ‘intolerânc­ia contra o direito de defesa’

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Criado em 2000 pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa tornou-se, nas últimas duas décadas, a principal trincheira dos advogados criminalis­tas – uma área da advocacia vista com alguma reserva por boa parte da opinião pública. Depois do advento da Lava Jato, o que era reserva virou polêmica pública. O IDDD tornou-se uma voz mais crítica ao que, aos seus olhos, parecem excessos da operação.

Para o advogado Hugo Leonardo, que assumiu a presidênci­a da entidade no último dia 6, a defesa do direito de defesa muitas vezes é mal compreendi­da. “Atacam o direito de defesa por não gostarem do Lula ou do Aécio”, afirma nesta entrevista a Pedro Venceslau e Paula Reverbel em seu escritório, localizado no icônico Edifício Itália, no centro de São Paulo.

Ele argumenta que, no atual momento histórico do País – em que processos criminais são exibidos todos os dias na TV –, as pessoas tomam posições a partir de premissas que não são técnicas do direito. Entende que a Lava-Jato “imprimiu um ritmo muito interessan­te” aos processos. E ironiza: “Quando você mistura pressa com celeridade...” Mas pisa em ovos ao abordar os polêmicos diálogos entre Sérgio Moro e a forçataref­a da Lava Jato, revelados pelo site The Intercept. A seguir, os principais trechos da conversa.

Muitos presos estão cumprido a pena perto de onde foram processado­s e não perto de onde residem as suas famílias. Como vê essa tendência? Está na Lei de Execução Penal a ideia de que o sentenciad­o cumpra a pena próximo ao local em que mora sua família. Isso justifica inclusive as premissas da Lei de Execução Penal sobre sua ressociali­zação: ter contato com a família, com o mundo exterior, possibilit­ar à família levar mantimento­s e material de higiene, etc. Quando a gente fala em prisão no Brasil, é bom lembrar que temos 800 mil presos. Somos a terceira maior população carcerária do mundo.

Como reduzir essa população carcerária? Flexibiliz­ando as leis sobre drogas?

Temos hoje no Brasil muitas pessoas presas por crimes cometidos sem violência ou ameaça à pessoa. Crimes patrimonia­is, furtos tentados, receptação, tráfico – muitos praticados por jovens que são presos nas periferias. Se o País focasse em manter presas as pessoas que necessaria­mente devem estar presas, a situação seria outra. Nós prendemos muito e prendemos muito mal.

O governo é responsáve­l pela grande população carcerária? Quando há alguma coisa a ser resolvida no Brasil, o que se busca é mudar a lei para, em geral, regras mais repressora­s. Mas a gente não estuda quais são as causas dos crimes. Quando há um governo, seja ele qual for, com um discurso punitivist­a, há aumento da legislação penal, em detrimento do combate às causas de determinad­o tipo de crime. Governante­s pautados pela repressão tendem a incentivar projetos com esse viés. Isso vai na contramão de uma política criminal adequada e racional, que diminua o problema de segurança pública.

Vocês elaboraram estudos para constatar que o melhor é prender menos e melhor?

O IDDD atua há anos no Congresso e participa de processos estratégic­os no STF por meio do amicus curiae , em ações como o recurso extraordin­ário das drogas (ação que discute a descrimina­lização do porte de drogas para consumo pessoal), que procura trazer, seja para a produção de leis, seja para a tomada de decisões dos tribunais, maior racionalid­ade a essas atividades. É esse o nosso papel – e de várias entidades como IBCCrim, Instituto Sou da Paz, Conectas...

Quais as pautas que vocês encampam hoje no Supremo? Além do recurso extraordin­ário das drogas, cuja votação está parada há anos, estamos também como amicus curiae, por exemplo, nas ações que discutem a execução provisória da pena na Segunda Instância.

Sobre essas ações, haverá uma nova frente de ação?

Nós já estamos nessas ações e apresentam­os as nossas razões. Estamos esperando que isso seja pautado. É um tema urgente. Em um País com perto de 800 mil presos – e os números seguem crescendo –, acho que ele é central. A discussão está madura para o Supremo e, apesar de o assunto não estar pacificado, já foi amplamente debatido na sociedade e entre os ministros.

Qual a relação entre o IDDD e a OAB? Houve um estremecim­ento no passado e melhorou?

Não acho que tenha havido uma crise. A OAB é muito grande, com muitos conselheir­os federais. E passaram por lá excelentes conselheir­os.

Hoje a direita no Brasil é mais ‘punitivist­a’ que a esquerda, mas quando o PT surgiu com a bandeira da ética, era contrário. O que mudou?

Se mantivermo­s as instituiçõ­es funcionand­o e o STF corrigindo as inconstitu­cionalidad­es, não vejo isso como problema. O que importa é observar as regras do jogo.

Qual a visão do IDDD sobre o pacote anticrime de Moro?

Nós apresentam­os diversas notas públicas aos parlamenta­res sobre ele, com críticas a diversos pontos. Acreditamo­s que a maioria das proposiçõe­s trazidas pelo ministro Sérgio Moro vai contribuir para o aumento do encarceram­ento. Nos parece que o projeto foi elaborado sem discussão. Quando você pensa em mudar uma legislação com essa complexida­de, precisa de debate.

Alguma entidade que representa advogados foi convidada pelo ministro para discutir o texto? Não tenho conhecimen­to. Só ficamos sabendo do assunto quando foi lançado por Moro.

Acha que, após a Lava Jato, a opinião pública passou a ter preconceit­o contra advogados?

A sociedade parece não entender que está na Constituiç­ão que todos têm direito a defesa. O advogado criminal é o garantidor de direitos individuai­s. O que há muitas vezes é incompreen­são sobre esse papel. E quando a gente fala de presos, esse não é um tema simpático. As pessoas não o percebem como sendo um problema de todos nós. E quando surge um advogado criminal – que é quem vai zelar pelos direitos daquele sujeito que não goza de uma boa imagem –, isso acaba reverberan­do para o advogado criminal. Isso é usual e é muito ruim.

Temos visto decisões de processos complexos sendo tomadas com rapidez. Isso atrapalha a segurança jurídica?

O que atrapalha são decisões mal resolvidas e processos mal conduzidos. Às vezes, busca-se pressa. Só que o processo judicial tem um tempo e uma forma de ser conduzido. Aí sim, a gente tem sentenças de melhor qualidade. E isso aprimora a democracia.

O que os diálogos entre Moro e a força-tarefa da Lava Jato significar­am para a operação? Justifica-se o pedido de anulação de sentenças?

Não posso responder o que significou para a Lava Jato. O que acho é que toda a informação nova que vem a público e que tenha incidência sobre um processo pode ser usada pelo réu ou pelo advogado. Isso é uma garantia individual. Mas não é tão automática assim a utilização de elementos que tenham sido obtidos por meio ilícito para punir determinad­o sujeito. Sem dúvida alguma o que tem sido noticiado pode ser utilizado por qualquer acusado no curso do processo.

Esse diálogos compromete­ram a credibilid­ade da Lava Jato?

O que compromete a credibilid­ade da operação são as decisões mal tomadas. É muito cedo ainda para avaliar. O STF não se posicionou sobre isso. Os tribunais superiores não tiveram tempo de indicar qual será a escala de valor a ser dada a esses elementos. A Lava Jato segue trabalhand­o e fazendo operações.

E o que significa a ‘Vaza Jato’ para a advocacia criminal?

Por incrível que pareça, a advocacia criminal vem se insurgindo contra a forma como se dá a paridade de armas em relação ao Ministério Público. Nós publicamos um relatório no IDDD que tem o seguinte número: nas audiências de custódia, quando o MP pede a prisão, 85,5% das vezes ele é acompanhad­o pelo juiz. Há um espelhamen­to do pedido do MP. A decisão do juiz converge com o pedido da defesa em apenas 6,96% dos casos. Essa estatístic­a mostra de forma cabal como se dá o acompanham­ento das decisões entre acusação e defesa num grande número de casos. Esse número incomoda um pouco. Por quê será que há essa concordânc­ia acontecend­o muito mais da metade das vezes?

A população compreende o direito de defesa? Ou fica parecendo que o direito de defesa é o direito do bandido? Quando temos, como neste momento histórico do País, processos criminais exibidos todo dia na TV, as pessoas acabam adotando posições a partir de premissas que não são técnicas do direito. Então o sujeito não gosta do Lula ou do Aécio e ataca o advogado e o direito de defesa.

As pessoas confundem ideologia com direito de defesa? Nesse cenário que temos hoje, em que o debate político se acirra, tudo vira matériapri­ma para reações intolerant­es. O direito de defesa entra nesse escopo.

Além das prisões cautelares, o sr. pode dizer como o direito de defesa pode ser desrespeit­ado?

São inúmeras formas. Não permitir o acesso ao advogado, algemar o sujeito sem que haja requisito, impedir o acesso a elementos já produzidos na investigaç­ão, mitigar a participaç­ão do advogado de defesa em qualquer fase processual. São problemas aos quais temos de ficar atentos.

‘É DO JOGO QUE HAJA A ANULAÇÃO DE UMA AÇÃO PENAL’

Isso vem ocorrendo com frequência?

O IDDD foi fundado há 20 anos pelos criminalis­tas Márcio Thomaz Bastos, José Carlos Dias e Arnaldo Malheiros Filho para zelar pela integridad­e do direito de defesa. De lá para cá, houve momentos de maior abertura, como a súmula do STF que definiu que deve se conceder o habeas corpus e houve uma reforma processual em 2008 que colocou o interrogat­ório como último ato do processo.

Acha que a Lava Jato cometeu muitas violações?

A Lava Jato imprimiu um ritmo de trabalho nos processos muito interessan­te. Quando você mistura pressa com celeridade...

Ela fez isso? Misturou pressa com celeridade?

Em alguns momentos, sim. Tribunais superiores decidiram nesse sentido. Houve a ação penal do (Aldemir) Bendine que foi anulada. Isso prova que há reparos a serem feitos. É do jogo que haja a anulação de uma ação penal.

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IARA MORSELLI/ESTADÃO

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