Inspiradora.
Andréa Beltrão defende a sua Hebe, que estreia quinta, e diz, inspirada no seu exemplo, que o Brasil precisa de mais conversa
Andréa Beltrão fala de sua Hebe, que estreia quinta nos cinemas, e diz que o Brasil precisa de mais conversa.
Para muita gente, Andréa Beltrão parecia imbatível como candidata ao Kikito de melhor atriz, no Festival de Gramado deste ano, por sua interpretação em Hebe – A Estrela do Brasil, dirigida por seu marido, Maurício Farias, que celebra a apresentadora Hebe Camargo (1929-2012). “Mas aí cheguei a Gramado e o meu filho, que já estava lá, me disse que tinha visto um filme maravilhoso (Pacarrete) e que Marcélia Cartaxo havia sido ovacionada após a sessão. Perguntei se ele achava que ela ganhava (o prêmio de atriz) e ele disse que sim. Desencanei. Na manhã seguinte, no café, no hotel, já cumprimentei a Marcélia pela vitória, ela desconversou, ‘O que é isso?’, mas insisti, ‘Ganha, sim.’ Não deu outra.” Independentemente de premiações em festival, Hebe estreia nesta quinta, 26, três dias antes do sétimo aniversário de sua morte, em 2012.
O diretor Farias é cauteloso. “O ano não está sendo muito bom, e tem a questão do conservadorismo. A Hebe (Camargo) tinha a fama de malufista, reacionária, mas o perfil que a Carol (a roteirista Carolina Kotscho) propõe vai na contramão disso. Temos uma Hebe que enfrenta a censura, defende homossexuais, enfrenta o marido, uma mulher que consegue dialogar com todo o mundo, menos com o filho.”
Em Gramado, surgiram acusações de que o filme teria edulcorado tanto a personagem que a Hebe da ficção não teria nada a ver com a realidade. “Aí é que as pessoas se enganam”, garante a roteirista. “Não inventei nada. Tudo o que a Hebe faz e diz no filme é documentado. Tomei liberdades na estruturação dramática, mas quem vê as entrevistas da Hebe no Roda Viva vai identificar a nossa personagem. A entrevista está na íntegra no YouTube. Hebe entrou intimidada, dizendo que todos aqueles entrevistadores iam trucidála, e terminou aplaudida de pé.”
A Hebe de A Estrela do Brasil começa o filme de costas para o público, bebendo em seu camarim. Está rolando uma tempestade nos bastidores. Ela tem seu programa de entrevistas na Band e está visada pelas autoridades – leia-se, a censura do regime militar. O chefe de censura proclama – “Essa mulher é uma subversiva”. Diretor na emissora, Walter Clark contemporiza – “Essa mulher é a entrevistadora mais querida do Brasil”. Hebe provoca. A censura não quer que ela fale de sexo, exige que o programa seja gravado. Ela anuncia a mulher mais bonita do Brasil, Roberta Close. Dercy Gonçalves, outra entrevistada, fica indignada, grita “A mulher mais bonita sou eu” e mostra os seios. O circo está armado.
Por que essa Hebe? “Eu não tinha familiaridade nenhuma com a Hebe real, nem com a Hebe que o roteiro da Carol me apresentou. Ganhei um pacote completo, a personagem veio com a atriz que a Carol queria que a interpretasse. Como conheço bem a atriz (risos), achei que poderia ser interessante. E foi.” Muito.
Para interpretar o filme, Andréa precisou dar um tempo na sua Antígona, no teatro. É magnífica na sua recriação da tragédia grega, dirigida por Amir Haddad. “Foi um encontro inspirador”, define. “Interpretar Antígona havia sido como escalar uma montanha. A proposta para ser Hebe veio como outra montanha.” Só não dava para conciliar as duas. “Enviei a Antígona para o Olimpo, para que ela descansasse um pouco entre os pares de Zeus, e me vesti de juventude.” Coincidentemente, Hebe, na mitologia grega, é filha ilegítima de Zeus e Hera. Representa a juventude e os trabalhos domésticos. Não a Hebe apresentadora de TV. Ela até podia ter uma vida como esposa e mãe, mas o que fazia de melhor era sentar-se naquele sofá para entrevistar pessoas.
“Conheci brevemente a Hebe, mas nunca fui amiga dela. Mas antes mesmo de ler o roteiro da Carol, ao saber que ela me queria tanto no papel, já sentia uma predisposição. Esse Brasil está tão radicalizado, dividido, que uma mulher que se sentava para conversar e ia à luta pelo que acreditava, mas não querendo silenciar o outro, só isso já me parecia revolucionário. Estamos numa era em que todo mundo acha que está certo e quer calar a boca do outro. E eu não compactuo com isso.”
Como no caso recente do Simonal de Leonardo Domingues, em que Fabrício Boliveira não se parecer nem um pouco com o personagem, mas colocou na tela o seu suingue, Andréa vestiu o figurino de Hebe e se apropriou de seu espaço. O figurino, literalmente. “A família me autorizou a usar as coisas dela. Os vestidos, as joias, os sapatos. Tudo serviu maravilhosamente.” E os ornamentos ajudaram a (re)criar a personagem? “É como a árvore de Natal. A gente monta, mas se o duende não passar ali e fizer a mágica, não tem encanto.” Com Andréa no papel, a mágica está assegurada.
Ela jura que não ficou chateada por não haver sido premiada em Gramado. “Imagina, todo mundo me diz que a Marcélia (Cartaxo) está tão bem. Me parece justo que tenha ganho. Vou me sentir feliz se o nosso filme ajudar as pessoas a ver essa Hebe que pode até surpreender, mas é verdadeira. No atual estado das coisas, o Brasil está precisando de um sofá para que todos conversemos.”
Parceiros na arte, e na vida. Andréa Beltrão e Maurício Farias já têm filhos adultos e uma colaboração, na TV e no cinema, que inclui sucessos como A Grande Família e Tapas e Beijos.
Têm diferenças. Ela é solar, não vive sem praia. “Adoro me sentar diante do mar e ver a gente passando. É a coisa mais maravilhosa.” Ele não é praieiro, mas a acompanha. Fez o filme,
Hebe, para ela – por causa dela. E já trabalham no próximo projeto. “Vou voltar a dirigir novela, aliás, acho que as pessoas nem sabem que já dirigi novela. Vou dirigir a próxima novela das 9, depois de Amor de Mãe,
que vai substituir A Dona do Pedaço. Lícia Manzo já me entregou 20 capítulos iniciais, e é sobre eles que estou trabalhando, fazendo leituras preliminares, definindo elenco. As gravações vão começar só em fevereiro e a novela terá Andréa, Marieta Severo, Cauã Reymond.”
Hebe – A Estrela do Brasil provocou debates acalorados em Gramado, em agosto, quando o filme participou da competição. Ganhou um Kikito – o de melhor montagem, para Joana Collier e Fernanda Krumel. Teve gente que reclamou – Maurício Farias filma muito sua Hebe de costas. É uma sacada de gênio, que poucos entenderam. É conceitual – sua miseen-scène baseia-se toda nessa sutileza. Hebe viveu tanto frente às câmeras, e as pessoas, por décadas, a viram frontalmente. Para mostrar essa outra Hebe, embasada na realidade, ele muda o foco, e o ângulo. “Trabalho muito com TV, então estou acostumado a ver a imagem e o seu reverso. Implico sempre com o conceito do making of, como é levado. Se é para revelar os bastidores, a gente tem de mudar o ângulo e não insistir em pessoas que falam frontalmente.” Ele está muito curioso com a reação do público. Ele, só, não. Andréa Beltrão, a roteirista Carolina Kotscho. A Hebe de seu filme fala de sexo, defende homossexuais, desafia a censura. É pioneira ao falar sobre aids, e discutir saúde pública. Vai ao hospital público para assistir seu cabeleireiro – Carlucho, a quem define como “pessoa maravilhosa” –, que contraiu o vírus, é soropositivo e está morrendo.
A cena provocou críticas. Alguns críticos acharam fantasiosa, imagine se a Hebe ia entrar num hospital público sem provocar tumulto. Na verdade, isso ocorreu e as pessoas – os pobres do Brasil – talvez nunca esperassem e até achassem que não devia ser. O importante é o gesto. “A Hebe não é de esquerda, não é direita, é direta”, diz Andréa olhando para a câmera. Essa Hebe que conta anedotas, critica políticos, apanha do marido e só não consegue falar francamente com o próprio filho gay talvez seja uma surpresa e, principalmente, para o público conservador. “Me acusaram de embelezar tanto a minha Hebe que eu a teria botocado”, reflete Carol Kotscho. “Mas essa foi a Hebe que descobri ao pesquisar sobre ela. Não a conhecia, e ela me surpreendeu. Gosto de escrever roteiros sobre o que desconheço, para aprender mais sobre a vida. Insisto que as frases, mesmo as mais críticas e incisivas, são da própria Hebe. Vejam a entrevista dela no Roda Viva, que está na íntegra no YouTube. Quando vi eu me perguntei – ‘Que mulher é essa?’ Não podemos ser preconceituosos e nos fechar no que achamos que é. A realidade atropela a gente. Descobri uma personagem complexa, fascinante, contraditória até, mas que me permitia um recorte muito oportuno para refletir sobre o Brasil de agora. E quis compartilhar isso com o público.”
Para o papel, à medida que escrevia as cenas, Carol nunca pensou em outra atriz que não Andréa. “Quando ela disse que queria escalar essa montanha comigo, achei que estava no bom caminho.” Com Andréa veio o marido. “Durante muito tempo, eu, como todos os brasileiros, ouvia falar da Hebe e do Lélio (o marido dela). Pareciam ter o casamento mais perfeito do mundo. Foi um choque descobrir que o relacionamento era abusivo, que ele era violento. O Brasil é campeão de feminicídio. Isso, e a censura, a liberdade de expressão. É um filme muito atual. Agora, é com o público.”