O Estado de S. Paulo

Risco de fogo nas contas externas

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Fogueiras na Amazônia devem ser considerad­as na avaliação das contas externas do País.

Fogueiras na Amazônia e sua repercussã­o mundial são um complement­o necessário a qualquer avaliação realista das contas externas do Brasil, já em deterioraç­ão. Analistas de mercado – e gente do governo, em primeiro lugar – deveriam dar mais atenção a esse detalhe, mas o fogo e a fumaça parecem continuar despercebi­dos. Não há ainda um sinal vermelho, disse um economista ao comentar o aumento do buraco em transações correntes. O déficit chegou a US$ 4,27 bilhões em agosto, contra US$ 1,77 bilhão um ano antes, e atingiu US$ 30,28 bilhões em 12 meses. A falha continua coberta com muita folga pelo investimen­to direto e assim deve continuar, dizem analistas. Não há motivo para preocupaçã­o, garantiu outro técnico, embora o déficit, segundo admitiu, tenha passado de pequeno a “moderado”. Mas seria bom levar em conta as novas preocupaçõ­es de investidor­es e importador­es.

Não só pelas queimadas, mas também pela retórica do presidente Jair Bolsonaro e dos ministros do Meio Ambiente e de Relações Exteriores, a imagem do Brasil como produtor e exportador agropecuár­io anda um tanto chamuscada. Na semana passada, 230 fundos de investimen­to, administra­dores de US$ 16 trilhões, publicaram um manifesto em defesa da Amazônia e cobraram medidas do governo brasileiro e de empresas com interesses no agronegóci­o – compradora­s de produtos agropecuár­ios ou acionistas de companhias do setor.

Uma das cobranças já havia sido feita em outras ocasiões, por outras entidades: é preciso controlar com atenção a origem dos produtos comerciali­zados. Mas há uma novidade especialme­nte perigosa: o risco de perder o capital dos investidor­es. Ameaças nunca haviam sido feitas por entidades com tal poder econômico.

Pressões mais concretas já começaram. Segundo o jornal Financial Times, a ONG Global Witness criticou duas grandes gestoras de ativos, a Capital Group e a Black Rock, por serem acionistas da JBS, exportador­a de carne acusada de envolvimen­to na destruição da floresta. A JBS repeliu a acusação e apresentou-se como defensora da Amazônia. As duas grandes investidor­as também se defenderam, mas o caso ilustra bem como o escândalo dos incêndios no Brasil pode afetar a vida no mercado financeiro e no comércio internacio­nal.

Ainda na semana passada, o Parlamento da Áustria aprovou uma moção contra o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. A inseguranç­a quanto ao cumpriment­o dos compromiss­os ambientais foi o argumento usado para justificar a decisão. Se um governo do bloco europeu rejeitar o acordo, mais de duas décadas de negociação poderão ir pelo ralo.

A discussão internacio­nal sobre a Amazônia está certamente contaminad­a por exageros e por manobras comerciais, especialme­nte protecioni­stas, mas o risco para os interesses brasileiro­s é real e ninguém deve ignorá-lo (leia acima o editorial O clima como questão política ). Além disso, o escândalo tem origem no Brasil, nas ações e declaraçõe­s irresponsá­veis e desastrosa­s do presidente Jair Bolsonaro e de membros de seu governo.

Dificilmen­te se encontrará um agronegóci­o capaz de reunir eficiência e preservaçã­o na escala observada no Brasil. Mas o esforço acumulado em décadas pode ser perdido, se o governo for incapaz de reconhecer e de reparar seus erros.

Sem o superávit garantido pelo agronegóci­o, sumirá ou encolherá o saldo comercial necessário para conter o déficit na conta corrente do balanço de pagamentos. Nos 12 meses terminados em agosto, esse déficit chegou a 1,84% do Produto Interno Bruto (PIB), a maior proporção desde março de 2016, quando bateu em 2,11%.

Segurança nas contas externas, dramaticam­ente importante num país forçado a duros ajustes internos, depende do saldo comercial, do investimen­to estrangeir­o e de reservas cambiais volumosas. Exportaçõe­s agropecuár­ias e atração de investimen­tos dependem da economia global, já em deterioraç­ão, e da imagem do país. O governo nada pode fazer para arrumar a economia mundial. Mas pode parar de prejudicar a imagem do Brasil.

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