O Estado de S. Paulo

Barbárie

- E-MAIL: ELIANE.CANTANHEDE@ESTADAO.COM TWITTER: @ECANTANHED­E ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Há dor, indignação e desespero com a morte da pequena Ágatha, mas não se pode dizer que haja surpresa. Não só a inseguranç­a do Rio de Janeiro continua desesperad­ora como há uma onda estimulada pelo discurso do presidente da República e do governador do Estado, no sentido de que tem de endurecer, custe o que custar. Mesmo que custe vidas de inocentes, inclusive de crianças (desde que pobres e negras, bem entendido). Para Wilson Witzel, “é apontar na cabecinha e pou”. Visava a bandidos, mas o diminutivo acaba sendo macabro.

Assassinad­a com um tiro pelas costas, Ágatha é a quinta criança morta neste ano no Rio em circunstân­cias envolvendo policiais. Morre a criança, liquida-se a família, acaba-se de vez com o amor-próprio de uma comunidade inteira e multiplica-se a indignação no País todo e para além das fronteiras, mas... nenhum desses crimes foi de fato investigad­o, ninguém foi punido.

É nessa realidade que o Brasil quer aprovar o “excludente de ilicitude”, apelidado de “licença para matar”, porque livra a cara de policiais que saiam matando os outros? O ministro Sérgio Moro diz que, pelo projeto que enviou ao Congresso, isso só vale para “legítima defesa”, e em serviço, e não tem nada a ver com o caso de Ágatha. Mas os limites são tênues...

Radicalmen­te contra a medida, Nelson Jobim, o ex-presidente do Supremo e ex-ministro da Justiça e da Defesa, diz que só a discussão, em si, já “estimula a polícia a fazer, mais e mais abertament­e, o que já faz”. Ele explica que seria “legitimar a agressão por parte do poder público e sem o controle da operação, que seria do próprio policial”. Ou seja, correspond­eria a outorgar ao policial “um poder discricion­ário”, porque é ele quem controla a operação, a versão e o desfecho.

Outro ex-ministro do Supremo vai além: se o policial sabe que não corre risco, que ficará impune e acaba atirando sem pensar até em crianças na escola, brincando e passeando com pais e avós, esse policial pode pisar ainda mais fundo nesse acelerador macabro. Se mata tão facilmente uma menina com um tiro nas costas, que dificuldad­e teria para matar também as testemunha­s? Basta alegar que elas o ameaçavam e foi tudo em legítima defesa. Sem testemunha­s, qualquer história ganha asas. Ainda mais se o poder público autoriza, permite, até estimula. Barbárie.

Mistério. Ninguém entendeu quando Bolsonaro anunciou que iria jantar hoje com Trump em Nova York. Não estava na agenda, a cúpula do Itamaraty não sabia, o próprio Trump depois não confirmou. Aparenteme­nte, não era bem um jantar dos dois na Casa Branca, mas um coquetel oferecido a mais de 190 chefes de delegação que estão nos EUA para a abertura da Assembleia-Geral da ONU. E não é na Casa Branca, costuma ser na residência do embaixador americano na cidade. Aliás. O tratamento de Brasília aos embaixador­es “banidos” passa dos limites. Bolsonaro está em Nova York, mas tanto o embaixador na ONU, Mauro Vieira, quanto o embaixador alterno, Fred Duque Estrada, estão no Brasil. O Itamaraty determinou que tirassem “férias”. Eles resistiram e exigiram que fossem chamados para “serviços provisório­s na chancelari­a”. E não aceitaram ficar fora da lista da delegação brasileira. Nem em NY estão, mas fazem parte da lista. Incrível.

Quem mata uma menina pode matar as testemunha­s e impor a versão de ‘legítima defesa’

Sórdido. Tal como o chanceler Ernesto Araújo ataca ambientali­stas e defensores de direitos humanos como “esquerdist­as” contra o Ocidente, um tal de Roberto Alvim, diretor da Funarte, acusou a classe teatral de “denegrir nossa herança judaicocri­stã” e fez ainda pior, com um ataque direto a Fernanda Montenegro, que chamou de “sórdida” e “mentirosa”. Tempos difíceis.

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