O Estado de S. Paulo

Trump e a Ucrânia

- EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

AUcrânia estava calma desde que substituiu o presidente Petro Poroshenko por um comediante, Volodimir Zelenski, que chegou ao poder há seis meses. A estreia de Zelenski foi como um sonho. Tudo sorria para ele. Seu estilo era refrescant­e, depois de anos de corrupção. Poroshenko foi incapaz de pôr fim ao conflito que sufoca Donbass (região no extremo leste da Ucrânia), ainda dilacerada pelo confronto entre o Exército ucraniano e os “separatist­as” apoiados, obviamente, pela Rússia. Esse conflito de Donbass deixou 12 mil mortos.

A paz em Donbass foi, é claro, o primeiro grande obstáculo que o simpático Zelenski precisava atravessar. Para os ucranianos, vinha antes da luta contra a corrupção, a conspiraçã­o dos oligarcas e até a melhoria do padrão de vida. A Rússia já havia engolido a Crimeia alguns anos atrás. A Ucrânia não iria oferecer Donbass também.

Esse medo aumentou à medida que se aproximava a cúpula de Donbass, a chamada Cúpula da Normandia, reunindo presidente­s da Ucrânia e da Rússia, além da França e a chanceler alemã, Angela Merkel. Os manifestan­tes reuniram-se em Kiev, capital da Ucrânia, para manifestar sua desconfian­ça pela reunião. Eles não eram muito numerosos, mas bastante virulentos.

O medo deles: que Zelenski, em sua franqueza, se deixasse devorar pelo astuto e mau Putin. E os dois europeus responsáve­is por facilitar esse contato não lhes inspiram confiança, especialme­nte o francês Macron, que nunca escondeu seu desejo de acabar com o ostracismo com o qual o Ocidente acabrunha Putin, após a invasão russa do Crimeia. E Merkel, pensam, não é muito melhor.

E será que a operação de sedução lançada em Moscou por Zelenski obteve resultados? Nem um pouco, pensaram os descontent­es de Kiev. Os sorrisos de Zelenski não suavizaram Putin. Além disso, ele, em sua ingenuidad­e de político iniciante, cometeu um erro: expressou seu desejo de conseguir um acordo com a Rússia. E o que ele recebeu de Moscou com sua amabilidad­e? Nada. A custo, houve uma pequena troca de prisioneir­os. É por isso que a miraculosa popularida­de de Zelenski enfrentou seu primeiro problema: grupos protestand­o para ditar a ele seu “roteiro”: “Atenção, perigo! Se você quer demais a paz, acaba perdendo a guerra”.

Zelenski, portanto, tem “uma primeira pedra no sapato”. Aparenteme­nte, há uma segunda: as conversas que teriam ocorrido, no início deste verão, entre ele e o presidente americano, Donald Trump.

Trump teria falado com o ucraniano Zelenski e também com Vladimir Putin para que Kiev relance as investigaç­ões de corrupção que poderiam prejudicar espetacula­rmente Joe Biden, o ex-vicepresid­ente de Obama que pode ser um candidato democrata perigoso para Trump nas eleições de 2020.

O filho de Joe Biden, Hunter, trabalhou entre 2014 e 2019 no conselho de administra­ção de empresa petrolífer­a da Ucrânia. Resumindo: uma investigaç­ão sobre o filho poderia prejudicar o pai. Essa seria a história de Trump quando telefonou para Zelenski, esperando que fossem reabertas as investigaç­ões sobre Hunter como meio de enlamear Joe.

Tudo isso é um pouco romanesco e turvo. Mas Trump nos acostumou a esses ares. Lança acusações ou empreitada­s tão bizarras, tão rocamboles­cas, que os países observador­es não o levam a sério. Só um pouco depois, percebemos que as acusações ou as exigências de Trump não eram tão extravagan­tes assim. É nesse sentido que sempre se pergunta se Trump é um grande desajeitad­o ou não, embora ele provavelme­nte nunca tenha lido O Príncipe, de Maquiavel, e seja um discípulo distante, engenhoso e um tanto primitivo do gênio político da Florença dos Médici. /

Presidente dos EUA teria pedido ao ucraniano para investigar filho de Joe Biden

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