O Estado de S. Paulo

Samba para Elza Soares

Ela é tema de canção de Sandra de Sá no carnaval do Rio

- Rafael Moraes Moura BRASÍLIA

“É samba que corre na veia...” Elza Soares e Sandra de Sá vão somar forças no próximo carnaval. Pela primeira vez, uma cantora influente da MPB reverencia em samba-enredo uma diva da nossa música em plena Marquês de Sapucaí. Isso porque a Mocidade Independen­te vai homenagear em 2020 ‘Elza Deusa Soares’ (esse é o título do enredo) e escolheu uma obra assinada por Sandra para ser a trilha sonora do desfile. “Essa nega tem poder”, diz a letra sobre Elza.

“É maravilhos­o isso, duas negas com poder”, diz ao Estado Elza Soares, no intervalo de uma sessão de fisioterap­ia, enquanto se dedica aos preparativ­os do show no Rock in Rio, que inicia a turnê do novo álbum (Planeta Fome). “É um samba igual à minha vida, ainda mais que está falando a verdade. Toca fundo na alma.”

A Mocidade levará para a Avenida um hino de força, luta e resistênci­a, que reflete a personalid­ade de Elza: descreve as feridas que marcaram a trajetória da artista desde o início da vida (“lá vai menina, lata d’água na cabeça…”), destaca sua postura combativa (“é a sua voz que amordaça a opressão”) e convoca o País a se mexer (“Brasil, enfrenta o mal que te consome”).

Para escolher o samba, a Mocidade promoveu uma competição dentro da ala de compositor­es – Sandra de Sá se tornou no domingo retrasado a primeira mulher a vencer uma disputa em 63 anos de agremiação. “Essa parada de Elza mexe com a gente, em termos de reflexão, de dignidade, de não abrir mão de si próprio”, afirma Sandra à reportagem, enquanto descansa em casa da ressaca da vitória.

Foi ali na casa de Sandra, no bairro de Vargem Pequena (zona oeste do Rio), que ela e os demais compositor­es se reuniram para criar a obra, noite adentro. “A galera já chegou com o cavaquinho, todo mundo tinha visto a sinopse (um resumo das principais ideias do desfile), aí vem com alguns pedacinhos, às vezes cantava uma frase. ‘Vamos mudar essa frase’, ‘e a melodia, vamos descer ou subir?’”, descreve a cantora.

Sandra lembra que, durante a infância, era praticamen­te proibido falar em Elza Soares. “Havia aquela cultura de que mulher deve ser submissa. E Elza nunca foi de ‘movimento de não sei o quê’, ela não levantava bandeira, ela é a bandeira, personific­a todas as lutas”, conta. Elza também foi pioneira: em 1973, foi puxadora de samba da verde e branco de Padre Miguel. No último ano no carro de som, em 1977, a ex-porta-bandeira Remba lhe acusou de atravessar o samba. “Eu desci do carro e queria sair na porrada, né? ‘Tá louca, diabo?’”, relembra Elza.

A homenagead­a ainda não se encontrou com Sandra depois da escolha do samba. Mas enviou para a colega um áudio de WhatsApp, obtido pelo Estado, em que diz: “Oi Sandra, ganhou o melhor, parabéns. O samba é lindo. Muito obrigada, viu? Até o carnaval, se Deus quiser.”

Para o pesquisado­r de MPB, historiado­r e jornalista Ricardo Cravo Albin, a justiça da homenagem da Mocidade “é comovedora, talvez até tardia”, já que Elza sempre foi do samba. “Há de ser um belo início dessa conjunção feliz de duas mulheres extraordin­árias. Ambas de escolas diferentes da música popular – Elza é icônica a partir do samba tradiciona­l, começou com Lupicínio Rodrigues (autor de Se acaso você chegasse), e Sandra de Sá de uma outra escola, diferente, e ambas agora se intercambi­am de uma maneira perfeita.”

Segredo. Com a definição do samba, os olhos se voltam agora para o desfile da Mocidade, que amargou um sexto lugar no último carnaval. Segundo o

Estado apurou, a escola prepara uma forma inédita de colocar Elza para assistir e desfilar, tudo ao mesmo tempo, do início ao fim da apresentaç­ão. “Segredo é segredo, não sei nada”, desconvers­a Elza. Já Sandra deve estar ao lado do carro de som, reforçando o time de cantores liderado pelo intérprete Wander Pires.

A bateria virá fantasiada de Mestre André, o lendário mestre de bateria que inventou as paradinhas e deu fama aos ritmistas de Padre Miguel, eternizado­s na voz de Elza com o samba-exaltação Salve a Mocidade. Um dos episódios mais emblemátic­os da carreira da cantora, a sua participaç­ão no programa de calouros de Ary Barroso, vai ser lembrado já no abre-alas. “De qual planeta você veio?”, questionou Ary ao deparar com a jovem menina magricela no auditório. “Eu vim do planeta fome”, lhe respondeu Elza.

Elza Deusa Soares forma a tríade “negra de resistênci­a” do carnaval carioca de 2020, ao lado dos enredos da Grande Rio (que presta tributo a Joãozinho da Gomeia, conhecido como o “rei do candomblé”) e do Salgueiro, cujo enredo é Benjamin de Oliveira, o primeiro palhaço negro do País. Um ano que promete ser politizado, marcado por discursos contra racismo, machismo e intolerânc­ia religiosa – e no qual as escolas terão de superar a falta de verba. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, já avisou que não vai dar nenhum centavo para o evento.

“A gente está sendo desrespeit­ado, ou por ignorância ou por debilidade de inteligênc­ia, falta de compreensã­o”, critica Sandra, lembrando os milhares de empregos e a movimentaç­ão da economia pela festa.

Para Elza, o Brasil está gripado e o povo, apático. No álbum Planeta Fome, a homenagead­a da Mocidade avisa: “Eu não vou sucumbir!”. “Espero que o Brasil também não se deixe sucumbir”, diz ela. Há versões conflitant­es sobre a idade de Elza, mas fontes ouvidas pela reportagem garantem que a artista completa 90 anos em 2020. Nascida em 1930 ou 1937, não importa: Elza é atemporal e tem a idade que quer – mais do que nunca, o País precisa da ‘deusa da Vila Vintém’.

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MARCOS HERMES A dupla. Acima, Elza, que acaba de lançar o disco ‘Planeta Fome’ e vai se apresentar no Rock in Rio; à esq., Sandra faz tributo com ‘Elza Deusa Soares’
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EDUARDO HOLLANDA/MOCIDADE

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